Acórdão nº 13977/21.3T8LSB.L1-2 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 14 de Julho de 2022
Magistrado Responsável | PAULO FERNANDES DA SILVA |
Data da Resolução | 14 de Julho de 2022 |
Emissor | Court of Appeal of Lisbon (Portugal) |
Decisão Texto Parcial:
Acordam na 2.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa I.
RELATÓRIO.
Neste processo comum de declaração, a A., FCE BANK PLC, demanda o R., DFS, pedindo que: - Seja declarado que chegou ao seu termo o contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel de matrícula …-…- …; - O R. seja condenado a reconhecer que o referido veículo pertence à A.; - O R seja condenado na entrega definitiva à A. do referido veículo automóvel, bem como os respetivos documentos.
Como fundamento do seu pedido, a A. alegou, em síntese, que o R. comprou a aludida viatura à Ford Lusitana, SA., com recurso a financiamento da A., sendo que para garantia do reembolso do valor financiado foi constituída uma reserva de propriedade do veículo a favor da Ford Lusitana, a qual cedeu tal reserva à A., com consentimento do R.
Alegou igualmente que o R. deixou, entretanto, de pagar as prestações a que estava obrigada, tendo, por isso, o interpelado para regularizar os pagamentos em falta ou entregar o mencionado veículo, o que nada fez.
O R. não contestou.
Por sentença de 09.02.2022, a ação foi julgada improcedente e o R. absolvido do pedido, sendo que, no essencial, consta da sentença que «No caso, a Requerente é uma financeira e fundamenta o pedido de apreensão deduzido nos autos na circunstância de ser titular de reserva de propriedade sobre veículo, adquirido pelo Requerido, que aquela financiou integralmente. Mais alegou que a vendedora transferiu para si a reserva de propriedade, enquanto financiadora.
A simples descrição da alegação factual denota uma absoluta impossibilidade lógica: a vendedora não pode transferir uma propriedade que não se mantém na sua esfera, uma vez que aquela se transmite, com o pagamento integral, para o adquirente, o que foi possibilitado graças ao financiamento (cfr. artigo 409.º, n.º 1 a contrario do Código Civil, que dispõe que “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.”).
Finalmente, não procede a afirmação de que a transferência de propriedade pode ficar dependente de outro “qualquer evento”, na medida em que o que o artigo 409.º do Código prevê é a possibilidade de uma cláusula acessória, não a possibilidade de suspensão do sinalagma contratual. Assim sendo, a cláusula em que assenta tal transferência de reserva de propriedade não pode deixar de ser considerada nula e de nenhum efeito, na medida em que assenta numa impossibilidade jurídica e lógica – cfr artigos 294.º e 409.º, n.º 1 a contrario do Código Civil (Segue-se de perto: douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/7/2017, do qual foi Relatora a Sr.ª Desembargadora Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado, disponível in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php ?codarea=58&nid=5285 (consultado em 31.01.2019)».
Inconformada, a A. recorreu daquela decisão, apresentando as seguintes conclusões: «A. No caso em apreço, e conforme resulta da documentação junta aos autos e dos factos dados como provados, a reserva de propriedade foi inicialmente constituída pela entidade alienante do veículo, a saber, a FORD LUSITANA, S.A., e no âmbito do contrato de alienação que constituiu a compra e venda do veículo.
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Como se pode observar no Doc.2 junto com a Petição Inicial, o contrato de compra e venda foi celebrado com reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo, para garantia do montante de EUR 12.746,13, exatamente o montante acordado pagar pelo Apelado à Apelante, por conta do financiamento concedido.
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No âmbito do referido contrato, o efeito jurídico da transferência da propriedade ficou efetivamente condicionado à ocorrência de um evento determinado, neste caso o pagamento integral pelo Apelado à Apelante de todas as prestações acordadas no contrato de financiamento que possibilitaria a aquisição por aquele do referido veículo automóvel.
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Conforme alegado na Petição Inicial, para garantia do valor financiado foi constituída uma reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo – cfr. cláusula 12 das condições particulares e B das condições gerais do contrato de financiamento.
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A supra referida cláusula B das condições gerais esclarece que “Nos termos do disposto no artigo 409.º do Código Civil, e até à data em que todas as prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas pelo COMPRADOR à FCE BANK, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá à FCE BANK a titularidade de tal reserva de propriedade.”.
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Prevê o artigo 409.º, n.º 1 do C.C., “Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento”.
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A situação descrita enquadra-se sem qualquer dúvida no conceito de “qualquer outro evento” previsto na parte final do n.º 1 do referido artigo 409.º do C.C, que permite que no mesmo sejam abrangidas realidades como, por exemplo, a satisfação de crédito de terceiro que não o reservatário originário.
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Veja-se a este respeito o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12.08.2013, e em que é Relator o Exmo. Desembargador Pedro Martins, consultável em www.dgsi.pt: “A reserva da propriedade (art. 409 do CC) só pode ser estipulada a favor do alienante, mas isso não impede que a reserva possa ser estipulada para garantia do pagamento do crédito do mutuante (isto ao abrigo da parte da previsão ou até verificação de qualquer outro evento que consta do n.º 1 do art. 409 do CC) e que depois seja transmitida para este, com sub-rogação dele nos direitos do devedor” (sublinhado nosso).
I. Veja-se ainda o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 15.07.2008, e em que é Relator o Exmo. Desembargador Hélder Roque, consultável em www.dgsi.pt: “É que a reserva de propriedade pode ser constituída legalmente, para garantir um crédito de terceiro, em especial, quando este tenha a sua fonte num contrato relacionado com a compra e venda de veículo, como acontece com o contrato de mútuo celebrado com o objectivo de financiar o primeiro contrato, ou seja, o contrato de compra e venda.” J. Ora, verificado que se encontra o facto de a reserva de propriedade ter nascido no âmbito de um contrato de alienação (nomeadamente no contrato de compra e venda celebrado entre a Apelada e a vendedora FORD LUSITANA, S.A.), e o facto de o evento do qual depende a transferência de propriedade se encontrar de forma clara e inequívoca dentro do legalmente estipulado, K. Urge concluir que nada impede a constituição da reserva de propriedade nos termos em que a mesma foi efetuada.
L. Este mesmo é de resto o entendimento defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2014, em que é relatora a Exma. Conselheira Maria Clara Sottomayor, consultável em www.dgsi.pt, que de seguida se reproduz, por total adesão ao mesmo: “Segundo Isabel Menéres Campos, «(…) a afirmação de que a reserva de propriedade a favor do financiador é nula por corresponder a um negócio contrário à lei não colhe, por não conseguirmos descortinar qual a norma jurídica imperativa violada. Como tivemos oportunidade de rever ao longo deste trabalho, a regra da consensualidade, constante do artigo 408.º do Código Civil, não...
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