Acórdão nº 183/21.6GDCBR-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 29 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelROSA PINTO
Data da Resolução29 de Junho de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

A – Relatório 1.

Pela Comarca de Coimbra (Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 2), por sentença de 13.12.2021, transitada em julgado a 25.1.2022, o arguido AA foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº1, e 69º, nº1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses.

  1. A 17.1.2022, o arguido entrega nos autos, voluntariamente, a carta de condução.

  2. Posteriormente, o M.P. procede à liquidação da pena acessória, fixando o início do cumprimento da pena a partir do trânsito da sentença e o seu termo no dia 25.8.2022. Afirma o M.P. que o arguido foi informado para entregar a carta de condução no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da decisão. Não obstante isso, decidiu proceder à entrega da carta de condução no dia 17.12.2021, antes do referido dia 25.01.2022, data a partir da qual a proibição produz efeito.

  3. Dado o contraditório ao arguido, veio este dizer que “quanto ao cômputo da pena acessória, como sabia que iria ser submetido a internamento hospitalar, com data de alta incerta, e não querendo correr o risco de incumprir com a entrega do seu título de condução, optou por entregá-lo antes de tal internamento. Até porque não era sua intenção (e, de facto, não aconteceu) recorrer da douta sentença, sendo que o que reteve do respetivo teor oral foi de que tinha de entregar a carta até uma determinada data, como fez em Tribunal.

    Assim sendo, R. a V. Exª se digne ordenar a elaboração do cômputo da pena acessória, a contar da efetiva entrega do título, i. é, a partir de 17.12.2021”.

  4. Por sua vez, por despacho de 26.2.2022, decidiu-se proceder à liquidação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em moldes distintos dos referidos pelo Ministério Público, fixando-se a data do início da execução da pena no dia 17.12.2021 (data da efectiva entrega do título), e a data do término a 17.7.2022.

  5. Inconformado com tal despacho, veio o Ministério Público interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões: “1. O arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, ao abrigo do artigo 69.º/1/a) e 2 do Código Penal, pelo período de sete meses, por sentença proferida a 13-12-2021, transitada em julgado a 25-01-2022.

  6. Nessa sequência, no dia 17-12-2021, o arguido procedeu à entrega da carta de condução neste tribunal e, posteriormente, no dia 22-02-2022, veio requerer que se considerasse a mesma data como a de início do prazo da referida proibição.

  7. Apesar de o Ministério Público ter promovido que o termo do cumprimento da pena acessória ocorresse no dia 25-08-2022, sete meses após o trânsito em julgado da sentença, o tribunal decidiu considerar como data de início do cumprimento da pena acessória de proibição de condução a data da entrega do título.

  8. Em nosso entender, tal desfecho afasta de forma injustificada aquilo que vem expressamente preceituado nos artigos 69.º/2 e 3 do Código Penal e 500.º/2 do Código de Processo Penal.

  9. Ao mesmo tempo que ignora o facto de as sentenças penais condenatórias só gozarem de força executiva após o trânsito em julgado, nos termos dos artigos 467.º do Código de Processo Penal, e do 706.º do Código de Processo Civil, ex vi 4.º daquele primeiro Código.

  10. Ademais, a solução oferecida permite que, no hiato temporal entre a data de entrega da carta de condução e a data do trânsito em julgado da sentença, o arguido possa desobedecer à proibição a que foi condenado, não podendo ser responsabilizado pelo crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido no artigo 353.º do Código Penal.

  11. Paralelamente, em circunstâncias idênticas às do ponto anterior, no mesmo período, nem sequer será possível às entidades policiais procederem à devida fiscalização da violação em causa, porquanto a proibição que lhe dá origem só lhes é comunicada após o trânsito em julgado, nos termos do artigo 69.º/4 do Código Penal.

  12. O cumprimento antecipado de uma pena acessória, sem que a sentença que a determinou tenha transitado em julgado, constitui uma violação profunda do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º/2 da Constituição da República Portuguesa, e do princípio da liberdade, que proíbe a sua privação sem respetiva sentença judicial condenatória, aclamado no artigo 27.º/1 e 2 da nossa Lei Fundamental.

  13. A data de início do cumprimento de uma pena, ainda que acessória, não poderá ficar ao critério do arguido, divergindo do legalmente estipulado, quer por adiamento, quer por antecipação.

  14. No momento em que o arguido, depois de condenado, inicia o cumprimento da pena, está obrigatoriamente assistido juridicamente, pelo que lhe deve ser garantido o esclarecimento cabal da sua situação processual, designadamente o prazo para entrega do título de condução e suas respetivas consequências.

  15. A decisão judicial que determina como data de início do cumprimento da pena acessória o momento da entrega da carta de condução deve igualmente determinar, se possível, a mesma data para o trânsito em julgado, de forma a que daí se possam extrair todas as legais consequências, evitando as repercussões que oportunamente criticámos.

  16. Não devem as secretarias dos tribunais receber títulos de condução pertencentes a arguidos cuja sentença não tenha ainda transitado em julgado, sob pena de se onerar indevidamente os Srs. Funcionários de uma decisão que compete ao tribunal.

  17. As soluções aqui apresentadas são as únicas capazes de harmonizar os direitos e as imposições que esta problemática invoca, evitando uma mudança de paradigma que poderá resultar numa total subversão do sistema punitivo”.

  18. Notificado da admissão do recurso, o arguido não respondeu.

  19. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador da República emitiu Parecer no sentido da improcedência do mesmo e manutenção do despacho recorrido.

    Em síntese, alega que o facto de o arguido não ter interposto recurso da sentença e de ter invocado o receio de que, por força do seu previsto internamento, não pudesse entregar a sua carta de condução antes de esgotado o prazo que tinha para o efeito, o que não foi questionado pelo Ministério Público, permite ter como verdadeiro que a aceitação da carta de condução pela secretaria do tribunal criou nele a genuína convicção que, com esse ato, iniciava o cumprimento da pena acessória, sendo a expetativa assim criada, por isso, merecedora da tutela do art.º 157º.6 do CPC, aplicável ex vi do art.º 4º do CPP.

    O computo do início do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor com a entrega da carta de condução antes do trânsito em julgado da sentença não deve decorrer automaticamente desse simples ato, sendo também necessário que as concretas circunstâncias do caso permitam concluir que o arguido agiu de boa fé, com o genuíno propósito de cumprir a pena acessória em que foi condenado - como, a nosso ver, sucede in casu - e não por simples comodidade ou com a intenção de obter um benefício ilegítimo, nomeadamente o que pode resultar da não comunicação da pena acessória às autoridades de fiscalização do trânsito rodoviário antes do trânsito em julgado da decisão.

    Finalmente, embora se admita a utilidade de instruir as secretarias judiciais no sentido de ser levada ao imediato conhecimento do juiz titular do processo a entrega do título de condução pertencente a arguido cuja sentença ainda não tenha transitado em julgado, a quem competirá decidir, parece-nos que o caminho para o alcançar não será o jurisdicional, mas, antes, administrativo, mediante instruções dirigidas à secretaria pelo órgão de gestão competente”.

  20. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o arguido respondido ao douto parecer.

  21. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

  22. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

    * B - Fundamentação 1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

    São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o...

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