Acórdão nº 464/22 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução24 de Junho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 464/2022

Processo n.º 638/21

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I. Relatório

1. A. apresentou requerimento de habeas corpus ao abrigo do disposto no artigo 220.º, n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP), contra a sua reclusão em domicílio por catorze dias efetivada por Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ao abrigo do artigo 25.º do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 de 30.04, na redação conferida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 59-B/2021 de 13.05.

O Tribunal do juízo de instrução criminal de Setúbal (Juiz 2) da comarca de Setúbal declarou a inconstitucionalidade material e orgânica do citado artigo 25.º do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 de 30.04, na redação conferida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 59-B/2021 de 13.05 (doravante abreviadamente designada por RARes.CM n.º 45-C/2021 de 30.04), por violação do disposto nos artigos 19.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 1 e 2, 27.º, n.º 1, 165.º, n.º 1, al. b), todos da Constituição da República, julgando procedente o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente.

2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 76 e 78) da sobredita decisão ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15.09 (LTC), nos seguintes termos:

“Vem o Ministério Público interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto despacho de fls. 66-68 proferido no âmbito do Processo n.º 2657/21.0T8STB que correu termos na Instância e Tribunal supra epigrafados, na parte em que recusou a aplicação da norma constante do art.º 25.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 59-B/2021, de 13 de maio, publicada a 14 de maio, com fundamento na sua inconstitucionalidade material e orgânica, ao abrigo do disposto no art.º 280.º, n.º 1, al. a), da Constituição da República Portuguesa.

O referido recurso processar-se-á como de apelação em matéria cível e deverá subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo - art.ºs 69.º, 70.º, n.º 1, al. a), 71.º, 72.º, n.ºs 1, al. a), e 3, 75.º-A, n.º 1, 76.º e 78.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua versão atual.”

3. O Tribunal “a quo” admitiu o recurso (fls. 79), que foi recebido também no Tribunal Constitucional.

O Ministério Público apresentou alegações (fls. 93-132), defendendo o juízo de desconformidade constitucional do quadro legal desaplicado e enunciando as seguintes conclusões:

1. Está em causa nos autos ajuizar da inconstitucionalidade orgânica e material da norma contida no art. 25.º, n.ºs 1 [e 2] do Regime Anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29.04.2021 na redação conferida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 59-B/2021, de 13 de maio, (tendo esta última Resolução, no que interessa à decisão do recurso, apenas introduzido alterações ao n.º 1 do preceito).

2. Apesar de a M.ma juíza de instrução a quo remeter em bloco para a norma do «artigo 25.º da mencionada Resolução», cremos que a norma cuja inconstitucionalidade, orgânica e material, é invocada se limitará ao n.º 1 daquele preceito, porquanto o requerente A. foi passageiro de um voo com origem no Brasil, sem escalas em aeroportos de quaisquer outros países.

3. Por outro lado, a douta decisão impugnada declara, expressamente, a inconstitucionalidade da norma desaplicada com fundamento na desconformidade orgânica e material da mesma (a ser editada através de ato legislativo competente) porquanto a possibilidade de privação de liberdade por isolamento profilático (por 14 dias) de passageiros provenientes do Brasil com registo de saída nos 14 dias anteriores à sua chegada a Portugal, não se enquadrava nas exceções constitucionalmente admissíveis previstas art. 27.º, n.º 3 da CRP, por não ter controlo judicial.

4. No entanto, c onforme resulta, inequivocamente, do teor do despacho recorrido, decidiu a M.ma Juíza de instrução a quo - para além de estatuir a inconstitucionalidade orgânica e material da norma contida no artigo 25.º, n.º 1 do Regime Anexo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29 de Abril, na redação da RCM n.º 59-B/2021, de 13 de maio – julgar «(…) ilegal, por violadora dos mencionados normativos legais (Artigo 19°, n° 1, 18°, n°s 2 e 2, 27°, n° 1, 165°, n° 1, al. b) da C.R.P.), a situação de confinamento profiláctico a que o Requerente está sujeito».

5. Se se atentar, por isso, na economia da decisão impugnada, podemos concluir que, independentemente do juízo formulável sobre a inconstitucionalidade material e orgânica da interpretação normativa desaplicada pela M.ma juíza a quo – a emergente do prescrito no artigo 25.º, n.º 1 do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29 de abril, na redação conferida pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 59-B/2021, de 13 de maio – o resultado processual final permaneceria inalterado, mantendo-se o veredicto no sentido da verificação da ilegalidade da detenção e a consequente determinação de restituição do requerente à liberdade.

6. Constata-se, assim, a ocorrência, no despacho recorrido, de uma fundamentação alternativa ao julgamento de inconstitucionalidade, suscetível de sustentar um resultado idêntico ao verificado, independentemente de qualquer juízo sobre a compatibilidade constitucional da norma efetivamente desaplicada.

7. Atenta a natureza instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido constante no sentido que fica bem ilustrado pelo douto Acórdão n.º 282/11, e no qual esclarece que:

« O Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente o carácter instrumental dos recursos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade: a decisão do recurso deve apresentar a virtualidade de se projectar de forma útil na decisão recorrida, de modo a alterar a solução jurídica obtida no caso concreto, mediante a reponderação do caso pelo tribunal comum (neste sentido, entre muitos outros, Acórdãos nºs 14/91, 454/91, 169/92, 272/94, 324/94, 332/94, 337/94, 343/94, 463/94, 577/95, 608/95, 41/96, 148/96, 366/96, 1015/96, 196/97, 490/99, 635/99, 362/2000 e 687/2004 – os arestos citados sem indicação do lugar de publicação podem ser consultados em www.tribunalconstitucional.pt ). O julgamento do recurso carecerá, por isso, de utilidade quando, qualquer que seja a solução a dar pelo Tribunal Constitucional à questão de inconstitucionalidade, ela se mostre irrelevante para a solução do caso concreto, mantendo-se obrigatoriamente inalterada a decisão impugnada».

8. Parece que tal inutilidade ocorre nos presentes autos, uma vez que se verifica que a decisão recorrida assenta numa efetiva e suficiente fundamentação alternativa ao juízo sustentado na desconformidade constitucional.

9. É o que informa, sobre a matéria, Lopes do Rego, ao afirmar que:

«O Tribunal Constitucional vem considerando, de modo reiterado, que carece de utilidade a apreciação dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida haja assentado numa efectiva e suficiente fundamentação alternativa – limitando-se o recorrente a pôr em causa a constitucionalidade da norma em que assenta um dos fundamentos “alternativos” do decidido, constituindo, porém, “ratio decidendi” bastante a outra via alternativa seguida pelo tribunal “a quo”, alicerçada em normas absolutamente estranhas ao objecto do recurso de constitucionalidade, tal como o recorrente o delimitou» (Os recursos de Fiscalização concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 62 e 63).

10. Em virtude do exposto, não poderemos deixar de concluir que, no caso vertente, não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do presente recurso, uma vez que, verificando-se a ocorrência de uma fundamentação alternativa, a sua apreciação se revela inútil, na medida em que o resultado processual se manteria inalterado.

11. Para a hipótese de assim não se entender, e sem prejuízo de tudo o que ficou exposto, passaremos a pronunciar-nos sobre a dimensão substantiva do objeto do recurso interposto.

12. Invoca a M.ma juíza de instrução a quo a disposição constitucional delimitadora da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente a alínea b) do seu n.º 1, norma que se nos afigura fulcral para a adequada compreensão e a boa decisão da causa.

13. Partindo da douta decisão impugnada relativamente à desaplicação da norma ínsita no artigo 25.º, n.ºs 1 [e 2], do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29 de abril, na redação conferida pela RCM n.º 59-B/2021, de 13 de maio, importa cotejá-la com o teor do comando contido na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, no que concerne à inconstitucionalidade orgânica.

14. A questão jurídico-constitucional sobre a qual incide a douta decisão judicial impugnada resulta da ponderação de uma das diversas dimensões do quadro normativo que emergiu da necessidade de combater a pandemia de COVID-19 causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV-2, que já foi cognominada como «Ordem jurídica da crise pandémica».

15. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29 de abril, de cujo Regime anexo consta a norma encerrada na disposição sob escrutínio vigorou, por força do disposto nos seus Números 1 e 16, entre as 0:00 horas do dia 1 de Maio de 2021 e as 23:59 horas do dia 16 de maio de 2021 - tendo sucedido à Resolução do Conselho de Ministros n.º 6-A/2021, de 15 de abril, que regulamentou o Estado de Emergência declarado por meio do Decreto...

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