Acórdão nº 466/22 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução24 de Junho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 466/2022

Processo n.º 1341/21

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I. Relatório

1. A., menor e representada por sua mãe, B., apresentou pedido de habeas corpus contra a ordem do Delegado de Saúde Regional de Lisboa e Vale do Tejo de 22.12.2021, que determinou o isolamento profilático da peticionante pelo período de 16.12.2021 a 24.12.2021.

O Juízo de Instrução Criminal de Santarém (Juiz 1), do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, julgou procedente a providência de habeas corpus, determinando a imediata restituição de A. à liberdade.

2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 76 e 78) da sobredita decisão ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15.09 (LTC), nos seguintes termos:

O Magistrado do Ministério Público, nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado da decisão proferida a 23-12-2021 (Ref.ª 8873314) que recusou a aplicação da norma constante do artigo 3.º, do Regime Anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, referente aos n.ºs 2 e 10 da mesma – confinamento obrigatório, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, por violar a norma do artº 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a), 73.º, n.º 3, 75.º e 75.º-A, da Lei do Tribunal Constitucional.

Porque está em tempo, tem legitimidade e o recurso é obrigatório para o Ministério Público, deverá o mesmo ser admitido, nos termos das citadas disposições legais e depois ser remetido ao Tribunal Constitucional para apreciação da recusa de aplicação da norma acima identificada com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.

3. O Tribunal “a quo” admitiu o recurso (fls. 62v), com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, que foi recebido também no Tribunal Constitucional.

O Ministério Público apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:

1. O Ministério Público interpôs, em 27 de Dezembro de 2021, a fls. 49 e 50 dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 35 a 42, proferida pelo Juízo de Instrução Criminal de Santarém – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Processo n.º 1121/21.1T8TNV, “(…) nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), 72º, n.º 1, alínea a), 73º, n.º 3, 75º e 75-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional”.

2. Este recurso tem como objeto a “(…) decisão proferida a 23-12-2021 (Referência 8873314) que recusou a aplicação da norma constante do art.º 3º, do Regime Anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, referente aos n.ºs 2 e 10 da mesma – confinamento obrigatório (…)”.

3. O parâmetro de constitucionalidade cuja violação se invoca é “(…) a norma do art.º 165º, n.º 1, alínea b), da CRP” .

4. Uma vez que a questão de constitucionalidade aqui suscitada não difere, medularmente, de outras que já tivemos ocasião de apreciar, tomaremos a liberdade de reproduzir, no essencial, as alegações que elaborámos no âmbito dos Processos n.ºs 504/21, 618/21 e 673/21 deste Tribunal, incidentes sobre norma infraconstitucional semelhante à desaplicada nos presentes autos embora corporizada na alínea b), do n.º 1, do artigo 3.º, do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de Abril.

5. A resolução que agora nos ocupa - a Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, de 27 de Novembro, continente do regime anexo do qual consta a norma sob análise – instituiu uma situação de calamidade em todo o território nacional, ao abrigo do disposto, para além do mais, no “artigo 17.º da Lei n.º 81/2009 , de 21 de agosto, do n.º 6 do artigo 8.º e [n]o artigo 19.º da Lei n.º 27/2006 , de 3 de julho, na sua redação atual” , ou seja, respetivamente, na Lei que institui o Sistema de Vigilância em Saúde Pública e na Lei de Bases da Proteção Civil.

6. Com este respaldo, emitiu o Governo a norma ínsita na alínea b), do n.º 1, do artigo 3.º, do Regime da situação de calamidade anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021 , de 27 de Novembro , a qual permite confinar obrigatória e coercivamente, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde, “os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa”, admitindo a restrição do direito à liberdade dos cidadãos que viessem a estar sujeitos à mencionada «vigilância ativa».

7. Ora, embora pareça revelar-se evidente que a imposição coerciva de confinamento afeta e restringe o direito à liberdade, ou seja, o direito à liberdade física e de locomoção, exige-se-nos a presente abordagem, ainda assim, que densifiquemos o conteúdo de tal direito.

8. Na verdade, o confinamento de uma pessoa física ao espaço de um estabelecimento de saúde, do respetivo domicílio ou de qualquer outro local definido pelas autoridades de saúde constitui, sem dúvida, mais do que uma mera compressão, uma restrição à liberdade física, a liberdade de movimentos corpóreos ou, nas palavras de outros autores, à «liberdade de ir e vir».

9. Isto dito, não poderemos deixar de concluir que a norma suspeita consagra uma privação da liberdade não excecionada pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, e que, por conseguinte, viola materialmente o direito à liberdade proclamado no n.º 1 deste mesmo artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa.

10. Ora, ainda que aceitemos que o direito à liberdade pode ser, sem ofensa do Texto Fundamental, restringido, por lei, se colidente com outros direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente protegidos concretamente prevalecentes, em situações distintas das elencadas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, não poderemos deixar de considerar se tal compressão pode ser decidida pelo Governo (por meio de Resolução do Conselho de Ministros) sem autorização da Assembleia da República.

11. De acordo com o prescrito no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre (…) [d]ireitos, liberdades e garantias”, não existindo qualquer dúvida, designadamente pela sua inserção sistemática, que o Governo, ao estipular sobre restrições ao direito à liberdade consagrado no artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa, legislou, sem, para tal, ter obtido autorização parlamentar, sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

12. Na verdade, a Assembleia da República nunca autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre o poder de confinamento de uma pessoa física ao espaço de um estabelecimento de saúde, do respetivo domicílio ou de qualquer outro local definido pelas autoridades de saúde.

13. Assim, torna-se evidente ter o Governo legislado sobre matéria excluída da sua competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia, à partida, uma inconstitucionalidade orgânica porque violada uma norma de competência.

14. Concluindo, no caso vertente, como o fez o Tribunal Constitucional, (embora a propósito de alínea distinta da alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º, da CRP) no, igualmente douto, Acórdão n.º 275/09, “[v]erificado esse mesmo conteúdo inovatório, é forçoso concluir-se que o legislador governamental necessitava da autorização legislativa, na medida em que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 165º da CRP”.

15. Em suma, somos forçados a concluir que o Governo, ao legislar, inovatoriamente e sem autorização legislativa, sobre direitos, liberdades e garantias, matéria da reserva relativa da competência da Assembleia da República , violou o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa .

16. Inferindo do exposto, afigura-se-nos que o Governo, ao restringir - inovadoramente, sem autorização parlamentar e fora das exceções elencadas no artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa - o direito à liberdade por meio da norma plasmada na artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, de 27 de Novembro, violou material e organicamente o Texto Fundamental.

17. A aditar ao agora exposto, não poderemos deixar de convocar as recentes decisões proferidas pela 1.ª Secção deste Tribunal nos já mencionados Processos n.ºs 504/21, 618/21 e 673/21, a saber, e respetivamente, os doutos Acórdãos n.ºs 88/2022, 89/2022 e 90/2022, nos quais foi julgada inconstitucional a norma contida na alínea b), do n.º 1, do artigo 3.º, do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de Abril, norma idêntica à que aqui se aprecia.

18. Assim, atento o agora explanado, não pode o recorrente Ministério Público deixar de concluir que a norma contida no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, de 27 de Novembro , se revela, material e organicamente, violadora da Constituição da República Portuguesa, designada e respetivamente do princípio do direito à liberdade ínsito no artigo 27.º, n.º 1 ; e do prescrito na alínea b), do seu artigo 165.º .

19. Por força do exposto, deverá o Tribunal Constitucional ...

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