Acórdão nº 465/22 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Junho de 2022
Magistrado Responsável | Cons. António José da Ascensão Ramos |
Data da Resolução | 24 de Junho de 2022 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO Nº 465/2022
Processo n.º 672/21
2.ª Secção
Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos
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Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1. A., B. e C., a última representada pelos dois primeiros, por ser menor de dezoito anos e sua filha, apresentaram requerimento de habeas corpus ao abrigo do disposto no artigo 220.º, n.º 1, alíneas c) e d) e n.º 2 do Código de Processo Penal, contra a sua reclusão em domicílio por catorze dias efetivada por Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ao abrigo do artigo 25.º do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 de 30.04 (doravante abreviadamente designado por RARes.CM n.º 45-C/2021 de 30.04).
O Tribunal do juízo de instrução criminal de Sintra (Juiz 1) da comarca de Lisboa Oeste declarou a inconstitucionalidade material e orgânica do citado artigo 25.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 de 30.04, por violação do disposto nos artigos 112.º, 119.º, 161.º, 164.º, 166.º, 198.º, 199.º e 200.º, todos da Constituição da República, “interpretada no sentido de que qualquer cidadão, nacional ou estrangeiro, residente ou não em território nacional, poderá ser privado da liberdade pelo período de 14 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial julgando procedente o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente” (cfr. fls. 18v), julgando procedente, por inerência, o pedido de habeas corpus formulado pelos requerentes e determinando a sua imediata restituição à liberdade.
2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 76 e 78) da sobredita decisão judicial ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15.09 (LTC), nos seguintes termos:
“ O MINISTÉRIO PÚBLICO, junto deste Tribunal, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, al. a), da Constituição da República Portuguesa, 70º, nº 1, al. a) e 72º, nº 1, al. a), estes da Lei nº 28/82, de 15 novembro, na sua última redação, interpor recurso para o Tribuna! Constitucional da douta decisão proferida em 07.05.2021, que, apreciando o pedido de habeas corpus apresentado por B. e A. , por si e em representação da filha menor de ambos, C. , considerou ilegal a ordem administrativa de isolamento profiláctico que lhes foi dirigida pela autoridade de saúde, por configurar privação da liberdade, e recusou a aplicação da norma contida no art.º 25º da Resolução do Conselho de Ministros nº 45-C/2021, de 30.04, quando interpretada no sentido de poder privar da liberdade qualquer cidadão nacional ou estrangeiro, residente ou não em território nacional, pelo período de 14 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial, com fundamento na sua inconstitucionalidade material e orgânica, por violação dos artigos 112º, 119º, 161º, 164º, 166º, 198º, 199º e 200º, todos da Constituição da República Portuguesa.
O presente recurso deve subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito meramente devolutivo, ao abrigo do disposto nos artigos 78º nº 2, da citada Lei nº 28/82, de 15 novembro, na sua última redação, e 406º, nº 1, 407º nº 2, al, a), e 408º, a contrario, do CPP”
3. O Tribunal “a quo” admitiu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo (fls. 34), que foi recebido também no Tribunal Constitucional.
O Ministério Público apresentou alegações (fls. 51-89), defendendo o juízo de desconformidade constitucional do quadro legal desaplicado e concluindo do seguinte modo:
“1. Está em causa nos autos ajuizar da inconstitucionalidade orgânica e material da norma contida no art. 25.º, n.ºs 1 [e 2] do Regime Anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29.04.2021.
2. Por outro lado – e apesar de o M.mo juiz de instrução a quo remeter em bloco para a norma do «artigo 25.º» [da mencionada Resolução] –, cremos que a norma cuja inconstitucionalidade, orgânica e material, é invocada se limitará ao n.º 1 daquele preceito, porquanto os requerentes B. e A. , por si e em representação da filha menor de ambos, C. , foram passageiros de um voo com origem no Brasil, sem escalas em aeroportos de quaisquer outros países. ´
3. Por outro lado, a douta decisão impugnada declara, expressamente, a inconstitucionalidade da norma desaplicada com fundamento na desconformidade orgânica e material da mesma (a ser editada através de ato legislativo competente) porquanto a possibilidade de privação de liberdade por isolamento profilático (por 14 dias) de passageiros provenientes do Brasil com registo de saída nos 14 dias anteriores à sua chegada a Portugal, não se enquadrava nas exceções constitucionalmente admissíveis previstas art. 27.º, n.º 3 da CRP, por não ter controlo judicial.
4. No entanto, c onforme resulta, inequivocamente, do teor do despacho recorrido, decidiu o M.mo Juiz de instrução a quo - para além de estatuir a inconstitucionalidade orgânica e material da norma contida no artigo 25.º, n.º 1 do Regime Anexo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29 de Abril – julgar que «(…) a decisão de privação da liberdade dos requerentes é ilegal, porque decretada por entidade incompetente (...)».
5. Se se atentar, por isso, na economia da decisão impugnada, podemos concluir que, independentemente do juízo formulável sobre a inconstitucionalidade material e orgânica da interpretação normativa desaplicada pelo M.mo juiz de instrução a quo – a emergente do prescrito no artigo 25.º, n.º 1 do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29 de abril – o resultado processual final permaneceria inalterado, mantendo-se o veredicto no sentido da verificação da ilegalidade da detenção e a consequente determinação de restituição do requerente à liberdade.
6. Constata-se, assim, a ocorrência, no despacho recorrido, de uma fundamentação alternativa ao julgamento de inconstitucionalidade, suscetível de sustentar um resultado idêntico ao verificado, independentemente de qualquer juízo sobre a compatibilidade constitucional da norma efetivamente desaplicada.
7. Atenta a natureza instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido constante no sentido que fica bem ilustrado pelo douto Acórdão n.º 282/11, e no qual esclarece que:
« O Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente o carácter instrumental dos recursos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade: a decisão do recurso deve apresentar a virtualidade de se projectar de forma útil na decisão recorrida, de modo a alterar a solução jurídica obtida no caso concreto, mediante a reponderação do caso pelo tribunal comum (neste sentido, entre muitos outros, Acórdãos nºs 14/91, 454/91, 169/92, 272/94, 324/94, 332/94, 337/94, 343/94, 463/94, 577/95, 608/95, 41/96, 148/96, 366/96, 1015/96, 196/97, 490/99, 635/99, 362/2000 e 687/2004 – os arestos citados sem indicação do lugar de publicação podem ser consultados em www.tribunalconstitucional.pt ). O julgamento do recurso carecerá, por isso, de utilidade quando, qualquer que seja a solução a dar pelo Tribunal Constitucional à questão de inconstitucionalidade, ela se mostre irrelevante para a solução do caso concreto, mantendo-se obrigatoriamente inalterada a decisão impugnada».
8. Parece que tal inutilidade ocorre nos presentes autos, uma vez que se verifica que a decisão recorrida assenta numa efetiva e suficiente fundamentação alternativa ao juízo sustentado na desconformidade constitucional.
9. É o que informa, sobre a matéria, Lopes do Rego, ao afirmar que:
«O Tribunal Constitucional vem considerando, de modo reiterado, que carece de utilidade a apreciação dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida haja assentado numa efectiva e suficiente fundamentação alternativa – limitando-se o recorrente a pôr em causa a constitucionalidade da norma em que assenta um dos fundamentos “alternativos” do decidido, constituindo, porém, “ratio decidendi” bastante a outra via alternativa seguida pelo tribunal “a quo”, alicerçada em normas absolutamente estranhas ao objecto do recurso de constitucionalidade, tal como o recorrente o delimitou» (Os recursos de Fiscalização concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 62 e 63).
10. Em virtude do exposto, não poderemos deixar de concluir que, no caso vertente, não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do presente recurso, uma vez que, verificando-se a ocorrência de uma fundamentação alternativa, a sua apreciação se revela inútil, na medida em que o resultado processual se manteria inalterado.
11. Para a hipótese de assim não se entender, e sem prejuízo de tudo o que ficou exposto, passaremos a pronunciar-nos sobre a dimensão substantiva do objeto do recurso interposto.
12. Invoca, assim, o M.mo juiz de instrução a quo o disposto nos artigos 18.º, 112.°, 119.°, 161.°, 164.°, 166.°, 198.°, 199.° e 200.° da Constituição, sendo certo que a disposição constitucional delimitadora da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente a alínea b) do seu n.º 1, é a norma que se nos afigura fulcral para a adequada compreensão e a boa decisão da causa.
13. Partindo da douta decisão impugnada relativamente à desaplicação da norma ínsita no artigo 25.º, n.ºs 1 [e 2], do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 29 de abril, importa cotejá-la com o teor do comando contido na alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, no que concerne à inconstitucionalidade orgânica.
14. A questão jurídico-constitucional sobre a qual incide a douta...
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