Acórdão nº 358/21.8T8VNG.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 21 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelANA LUCINDA CABRAL
Data da Resolução21 de Junho de 2022
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Proc. nº 358/21.8T8VNGP1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 4 Acordam no Tribunal da Relação do Porto I – Relatório Nos autos supra epigrafados, depois de realizada a audiência prévia onde se consignou ter sido tentada a conciliação das partes e se determinou a abertura de conclusão para eventual conhecimento das excepções invocadas pelas partes: ilegitimidade passiva e cumulação incompatível da causa de pedir, foi proferido o seguinte despacho: “AA intentou acção declarativa comum de condenação contra BB e CC, C..., Lda., e o Condomínio ..., sito na Rua ..., ..., em ..., Vila Nova de Gaia, representado por L..., Lda., peticionando que seja: “

  1. Declarada a nulidade do negócio de compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., em que foi vendedora a 2ª R. e comprador o 1º R. marido; b) Ordenado o cancelamento de todos registos relativos a tal prédio; c) A 3ª R. condenada no pagamento de 1.500,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento; d) O 1º R. marido condenado no pagamento de 10.000,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento; e) O 1º R. marido condenado à remoção ou reposicionamento de todas as câmaras de videovigilância, de forma a filmar/captar imagens apenas do que lhe pertence; f) O 1º R. marido condenado no pagamento de quantia nunca inferior a 300,00€ por cada dia de atraso na referida remoção ou reposicionamento, bem como no pagamento de quantia nunca inferior a 2.000,00€ por cada nova infracção (instalação de câmara nos moldes descritos), ao abrigo do artigo 829º-A do CC; g) Os RR. condenados nas custas e demais encargos com o processo.” Salvo melhor opinião, a pretensão do autor não deve prosseguir para além deste momento em que se procede ao saneamento do processo.

    Nos termos do disposto no artigo 186.º, 2, do CPC, a petição é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir ou quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

    Deriva da simples leitura do artigo 552.º, 1, d), do CPC, que, como antecedente lógico da pretensão formulada, o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção.

    Assim, não basta a invocação de um determinado direito subjectivo e a formulação da vontade de obter do Tribunal determinada forma de tutela jurisdicional. Tão importante quanto isso é a alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, a alegação dos factos constitutivos do direito.

    Funcionando no sistema jurídico o princípio do dispositivo e de acordo com as regras gerais da repartição do ónus da prova (artigo 342.º do Código Civil) é sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito (artigo 5.º, 1 do CPC), sem prejuízo do Tribunal poder conhecer de factos instrumentais, complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa e de factos notórios (artigo 5.º, 2, do CPC).

    Nos artigos 552.º, 1, d) e 582.º, 4, do CPC, o legislador fez uma opção entre dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir.

    Segundo o primeiro sistema bastaria a indicação do pedido, com o que todas as possíveis causas de pedir podiam ser consideradas no processo, de tal modo que ao responder à pretensão formulada, a sentença decidia em absoluto sobre a existência ou inexistência da situação jurídica afirmada pelo autor, impedindo-se que após a sentença houvesse alegação de factos anteriores e que porventura não tivessem sido alegados ou apreciados.

    Já a teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de fundar em factos a afirmação da situação jurídica, que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito de conformação do objecto da causa.

    Foi esta última a opção a que aderiu o legislador e, assim, o preenchimento da causa de pedir, independentemente da qualificação jurídica apresentada, supõe a alegação do conjunto de factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil (cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma Do Processo Civil, I Volume, 2.ª Edição, Almedina, 1999, p. 192 e ss. e Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais, Coimbra Editora, 1996, p. 54 e ss.).

    Na indicação da causa de pedir exige-se, pois, que o autor, mais do que meramente individualizar a relação controvertida, substancie a sua pretensão ou o seu direito pela indicação do facto constitutivo do mesmo (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição-reimpressão, Coimbra Editora, p. 351 e seguintes e Antunes Varela, M. Bezerra, S. Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição-revista e actualizada, Coimbra Editora, p. 245).

    Por outro lado, a necessidade de invocação da materialidade não pode deixar de escorar-se igualmente no respeito do princípio do contraditório, como condição do efectivo exercício do direito de defesa, impondo-se que ao réu seja dado conhecimento dos factos fundamentadores da pretensão.

    Estas são algumas das razões que justificam e creditam a imposição ao autor do ónus de invocar na petição os factos integradores/essenciais da causa de pedir.

    Não sendo inocente a exposição aqui destas considerações, entende-se que o autor não cumpre essa obrigação porquanto não especifica devidamente os fundamentos de facto em que pode assentar os pedidos que formula.

    Vejamos.

    Resultando da leitura do pedido constante da alínea a) que o autor pretende que seja declarada a nulidade da “compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., em que foi vendedora a 2ª R. e comprador o 1º R. marido”, verifica-se que o autor não descreve o dito contrato de compra e venda.

    Neste sentido, o autor começa no artigo 3) da petição inicial a expor que os primeiros réus descarregaram materiais de construção no logradouro afecto à fracção autónoma D do prédio onde reside (sito em ..., Vila Nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial sob o nº .../.... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...), para dar um salto e enunciar no artigo 5) que a venda do logradouro careceria do consentimento de todos os condóminos e que por isso é nula.

    Até este momento o autor não mencionou qualquer venda e, em bom rigor, não a descreve posteriormente, parecendo que caberá a quem lê a sua petição inicial deduzir que aquele logradouro é que terá sido vendido.

    Acrescenta o autor, sem grande compreensão, que “presumivelmente teve lugar uma segunda inscrição na matriz e uma segunda descrição na Conservatória de Registo Predial – confrontem-se os documentos 3 e 4 da presente com os documentos 6 e 7 ora juntos, respectivamente certidão do prédio descrito sob o nº ... e caderneta predial rústica do prédio inscrito sob o artigo rústico ... da União das Freguesias ... e ...; (Doc. 6 e 7)”.

    Não sendo o autor assertivo, tanto quanto é possível perceber, defende que terá sido vendido o logradouro afecto a uma das fracções (que não a sua) do prédio constituído em regime de propriedade horizontal onde reside, existindo uma duplicação de descrições prediais e de inscrições matriciais quando na realidade apenas existe um prédio.

    Podendo estar em causa, de acordo com a parca narração, uma venda de coisa alheia, o autor em seguida, sem razão lógica que o justifique, formula um pedido de condenação do 3.º réu, o condomínio do prédio onde reside, no pagamento de 1.500€ pelos danos relacionados com a frustração, saturação e cansaço que lhe diminuem a qualidade de vida, sendo de tal forma omissa a descrição de factos que sustentem este pedido que na sua contestação este réu defende que, se for como o autor alega, não deveria estar a ser demandado, mas deveria demandar por ser lesado, o que, de facto, parece ter mais sentido.

    Aqui chegados, ao não alegar com um mínimo de precisão os factos constitutivos da situação jurídica material que quer fazer valer em juízo o autor apresenta uma petição inicial sem causa de pedir, sendo por isso inepta, não sendo esta uma situação que possa ser remediada com um convite ao aperfeiçoamento.

    A ineptidão da petição equivale a uma inexistência do objecto do processo e constitui uma nulidade insanável, conduzindo a que se abstenha de conhecer do pedido e se absolvam os réus da instância.

    Conjuntamente com esta causa de pedir e pedido, o autor cumula segunda pretensão relacionada com a colocação pelo primeiro réu de umas câmaras de vigilância (em número que não sabe com rigor precisar) no seu prédio que permitem filmar o logradouro afecto à fracção D (que não é a do autor), o parque de estacionamento do condomínio, o portão de acesso ao logradouro, a zona de saída dos veículos do condomínio e a via pública, para daí afirmar que se tratam de captação de imagens ilícitas, que o 1.º réu tem controlado os horários, hábitos e rotinas do autor e da sua família e que os condóminos só têm privacidade quando se encontram no interior das habitações, com as janelas fechadas e as cortinas corridas, agindo assim o réu em violação gritante dos direitos de personalidade do autor.

    Nesse seguimento, formula mais um pedido, que o 1º réu marido seja “condenado à remoção ou reposicionamento de todas as câmaras de videovigilância, de forma a filmar/captar imagens apenas...

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