Acórdão nº 423/22 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Junho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução07 de Junho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 423/2022

Processo n.º 1326/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. No processo comum para julgamento por tribunal coletivo com o número 189/12.6TELSB-AK, as arguidas A., Lda. e B., Lda. (as ora recorrentes) suscitaram o impedimento da senhora juíza presidente do coletivo.

1.1. As arguidas viram tal pretensão rejeitada por despacho de 19/04/2021, com o seguinte teor:

“[…]

A arguida A. veio arguir o impedimento da Magistrada, pelos fundamentos aduzidos no respetivo requerimento.

Como é sabido os impedimentos encontram-se especificados nos arts. 39.º e 40.º do CPP com base em três ordens de razões: a relação pessoal do juiz com algum sujeito ou participante processual; a intervenção anterior no processo, como juiz ou noutra qualidade; e a necessidade de participar no processo como testemunha.

Segundo Jorge de Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: https://apps.uc.pt/mypage/files/nbrandao/1083 , “…numa compreensão teleológica da norma que atenda à ratio de salvaguarda da imparcialidade que lhe deve estar subjacente e a compatibilize com a necessidade de garantir a harmonia dos atos do processo entre si correlacionados, parece-nos que deve ela ser interpretada restritivamente no sentido de apenas levar ao impedimento do juiz de 1.ª instância que depois de, em sentença, ter conhecido do mérito da causa seja confrontado com um cenário de repetição integral da audiência de discussão e julgamento”. Nada que, em todo o caso, deixe desprotegida a garantia de imparcialidade, que sempre contará com a tutela oferecida pelo regime das suspeições (art. 43.º), aliás, muito mais adequado à abordagem casuística que este específico domínio aconselha. Assim se pode ler no C.P.P. Comentado de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes Pereira Madeira e Pires da Graça, pág. 131, «a intervenção do juiz em atos ou decisões anteriores do processo… com comprometimento decisório sobre a matéria da causa e o objeto do processo, é suscetível de gerar nos interessados na decisão apreensão ou receio, objetivamente fundados, sobre o risco de algum prejuízo relativamente à matéria da causa e ao sentido da decisão… A verificação de alguns dos motivos indicados determina, por si mesma, a verificação objetiva do impedimento, sem necessidade de alegação e demonstração ou prova das circunstâncias que constituam a razão das apreensões dos Como (sic).

Assim entende o Tribunal que, não obstante ter integrado o coletivo como vogal, no qual apenas se procedeu à audição do arguido e a inquirição de uma testemunha, sem que tenha havido conhecimento de mérito da causa, já que o mesmo foi declarado nulo, inexiste fundamento para o impedimento pelo que se indefere o requerido.

[…]”.

1.1.1. Desta decisão recorreram as identificadas arguidas para o Tribunal da Relação do Porto. Das alegações de recurso consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

No caso sub judice, a intervenção da “Senhora Juíza" em duas sessões da audiência de julgamento nas quais foi produzida prova relevante para a decisão da causa e o seu contributo para o sentido decisório dos despachos proferidos após deliberação do Tribunal Coletivo, especialmente aqueles supra citados que incidiram sobre a produção da prova – e que se reconduziram a um indeferimento de tudo quanto tinha sido requerido muito legitimamente pela Recorrente A., mormente, da produção de prova essencial à sua defesa, do prazo de contestação, da admissão de nova contestação e até a possibilidade de efetiva consulta da documentação apreendida a dezenas de empresas e pessoas individuais arguidas e intervenientes no processo original durante o inquérito (incluindo às Recorrentes) e referida na cota de folhas 4942 e seguintes dos autos, e que contém documentos essenciais ã defesa das Recorrentes e para esclarecimento da verdade material e boa e justa decisão da causa, e infirmação das imputações feitas às Recorrentes (porque permitiriam justificar a substancialidade das faturas que elas (e outras e outros) são acusadas de ter utilizado como sendo falsas, mas nunca foi consultada por ninguém, nem investigadores, nem procuradores, nem juízes, nem advogados, porque foi e está pura e simplesmente amontoada ao molho dentro de caixas e sacos tipo lixo, numa ou mais salas do edifício do Tribunal – aliado ao facto de a prova constituir elemento essencial para o esclarecimento da verdade material, para uma boa e justa decisão da causa e, em definitiva, para a prolação de uma decisão de absolvição ou condenação das arguidas Recorrentes, permite concluir que tal intervenção da “Senhora Juíza” não assumiu uma dimensão pontual e implicou um efetivo comprometimento decisório da “Senhora Juíza” sobre a matéria da causa e o objeto do processo, constituindo causa de impedimento da “Senhora Juíza” e causa suficiente e fundada de receio das Arguidas sobre o risco de algum prejuízo da “Senhora Juíza” relativamente à matéria da causa e ao sentido da decisão.

Importa afirmar aqui – nos termos e para os efeitos previstos no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional – o entendimento da Recorrente de que, se admitir a interpretação restritiva que fundamenta o despacho recorrido , a norma do artigo 40.º, alínea c), do CPP é inconstitucional e viola o Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, o direito a um processo justo e equitativo, consagrado nos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, as garantias de defesa enunciadas no artigo 32.º e a garantia e direito fundamental dos arguidos à imparcialidade dos Tribunais e dos Juízes, que emana das normas conjugadas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 12.º, 13.º, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 203.º; e viola ainda o artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o artigo 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

[…]

Conclusões

[…]

L. O instituto jurídico dos impedimentos previsto no artigo 40.º do CPP visa garantir a imparcialidade dos Senhores Juízes, sempre que ela possa ser colocada objetivamente em causa ou possa estar objetivamente sob suspeita para proteção dos próprios Juízes, da Magistratura Judicial e do exercício do Poder Judicial, e não apenas dos direitos e garantias dos cidadãos arguidos e dos intervenientes a qualquer outro título nos processos judiciais, designadamente do foro criminal; por uma razão muito simples mas fundamental: a imparcialidade é o fundamento último da legitimidade dos juízes, da magistratura judicial e do poder judicial.

M. O entendimento defendido pelas Recorrentes também é perfilhado no comentário de Henriques Gaspar ao artigo 40.º do CPP, invocado no despacho recorrido, embora também de forma limitada e restritiva, contrária ao sentido da norma, quando refere o autor: A norma prevê casos específicos de impedimento do juiz para garantia da imparcialidade objetiva. A intervenção do juiz em atos ou decisões anteriores no processo, que tenha assumido uma dimensão não apenas pontual, mas com comprometimento decisório sobre a matéria da causa e objeto do processo, é suscetível de gerar nos interessados na decisão apreensão ou receio, objetivamente fundados, sobre o risco de algum prejuízo do juiz relativamente à matéria da causa e ao sentido da decisão. É o fundamento constitutivo para garantia da imparcialidade objetiva. A verificação de algum dos motivos indicados determina, por si mesma, a verificação objetiva do impedimento, sem necessidade de alegação e demonstração ou prova das circunstâncias que constituam a razão das apreensões dos interessados quanto à imparcialidade. (…) A lei considera, assim, a prática dos referidos atos como um comprometimento decisório anterior, que constitui fundamento suficientemente objetivo e objetivado para justificar o meio preventivo de garantia da imparcialidade objetiva.

N. No caso sub judice, a intervenção da “Senhora Juíza” em duas sessões da audiência de julgamento nas quais foi produzida prova relevante para a decisão da causa e o seu contributo para o sentido decisório dos despachos proferidos após deliberação do Tribunal Coletivo, especialmente aqueles invocados na precedente Motivação de Recurso que incidiram sobre a produção da prova – e que se reconduziram a um indeferimento de tudo quanto tinha sido requerido muito legitimamente pela Recorrente A., mormente, da produção de prova essencial à sua defesa, do prazo de contestação, da admissão de nova contestação e até a possibilidade de efetiva consulta da documentação apreendida a dezenas de empresas e pessoas individuais arguidas e intervenientes no processo original durante o inquérito (incluindo às Recorrentes) e referida na cota de folhas 4942 e seguintes dos autos, e que contém documentos essenciais à defesa das Recorrentes e para esclarecimento da verdade material e boa e justa decisão da causa, e infirmação das imputações feitas às Recorrentes (porque permitiriam justificar a substancialidade das faturas que elas (e outras e outros) são acusadas de ter utilizado como sendo falsas, mas nunca foi consultada por ninguém, nem investigadores, nem procuradores, nem juízes, nem advogados, porque foi e está pura e simplesmente amontoada ao molho dentro de caixas e sacos tipo lixo, numa ou mais salas do edifício do Tribunal – aliado ao facto de a prova constituir elemento essencial para o esclarecimento da verdade material, para uma boa e justa decisão da causa e, em definitiva, para a prolação de uma decisão de absolvição ou condenação das arguidas Recorrentes, permite concluir que tal intervenção da “Senhora Juíza” não assumiu uma dimensão pontual e implicou um efetivo comprometimento decisório da...

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