Acórdão nº 924/19.1PBLRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 18 de Maio de 2022

Magistrado ResponsávelPAULO GUERRA
Data da Resolução18 de Maio de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Proc. n.º 924/19.1PBLRA.C1 PROCESSO COMUM SINGULAR Impugnação da matéria de facto Não cumprimento do ónus de especificação do artigo 412º do CPP Errada qualificação jurídica dos factos Crime de violência doméstica Crime de perseguição Concurso de crimes Internamento de inimputável por anomalia psíquica – seus pressupostos e sua medida JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – Juiz 1 Tribunal Judicial da Comarca de Leiria Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO 1.

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Leiria, Juiz 1, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA, tendo, por sentença datada de 18/11/2021, sido o mesmo CONDENADO nos seguintes termos (transcrição): «A. Considerar o arguido AA inimputável, em razão de anomalia psíquica, e absolvê-lo da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º 1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, de que vinha acusado, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal; B. Considerar o arguido AA autor de factos ilícitos-típicos correspondentes a um crime de violência doméstica p.p. pelos arts. 14.º n.º1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal e, em consequência, aplicar-lhe a medida de segurança de internamento, pelo período máximo de 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de o arguido se submeter às seguintes regras de conduta: a. Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida e seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; e b. Aceitar a vigilância tutelar e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for solicitado.

  1. Consignar que a medida de segurança acima aplicada será objecto de revisão no prazo de 2 (dois) anos sobre o trânsito em julgado da presente sentença».

    1. Desta sentença recorreu o arguido, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição): 1. «O presente recurso é interposto da decisão proferida nos autos que decidiu nos seguintes termos: - Considerar o arguido AA inimputável, em razão de anomalia psíquica, e absolvê-lo da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p.p.

      pelos arts.

      14.º n.º1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, de que vinha acusado, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal; - Considerar o arguido AA autor de factos ilícitos-típicos correspondentes a um crime de violência doméstica p.p.

      pelos arts.

      14.º n.º1, 26.º e 152.º n.º1, alínea b), e n.ºs 4 e 5 do Código Penal e, em consequência, aplicar-lhe a medida de segurança de internamento, pelo período máximo de 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de o arguido se submeter às seguintes regras de conduta: a. Submeter-se a tratamento médico psiquiátrico, frequentar a consulta com a periodicidade que lhe for exigida e seguir as prescrições e tratamentos médicos ordenados; e b.

      Aceitar a vigilância tutelar e o acompanhamento da DGRS da área da sua residência e comparecer perante a DGRS sempre que tal lhe for solicitado.

      - Consignar que a medida de segurança acima aplicada será objecto de revisão no prazo de 2 (dois) anos sobre o trânsito em julgado da presente sentença.

    2. O arguido não se conforma com a douta decisão, porquanto, por um lado, nega a prática dos factos; por outro, entende que os factos dados como provados não configuram um crime de violência doméstica e ainda, a medida de segurança aplicada é desproporcionada à gravidade e à perigosidade do arguido.

    3. Para a fixação dos factos dados como provados, a Meritíssima Juiz deu sobretudo enfoque às declarações da assistente.

    4. O arguido negou a prática dos factos.

    5. Assim, temos a palavra da assistente contra a do arguido.

    6. Na realidade as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento apenas alegaram assistir aos factos constantes dos pontos 14, 19, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 41.

    7. E tais factos são insusceptíveis de configurar a prática de qualquer ilícito, muito menos o crime de violência doméstica.

    8. Como de resto os demais factos.

    9. A considerarem-se os factos dados como provados, o que só por mera hipótese se admite, poderíamos estar na presença do crime de perseguição previsto e punido pelo art.º 152º - A do Código Penal.

    10. Contudo, reitera-se o entendimento de que a prova produzida não permite concluir pela prática dos factos dados como provados e consequentemente pela prática de qualquer ilícito criminal.

    11. Sem prescindir, entende-se que a medida de segurança aplicada ao arguido é desproporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.

    12. Com efeito, os factos em causa nos autos reportam-se a um período temporal situado entre finais Novembro de 2019 e finais de Fevereiro de 2020.

    13. Decorreu entretanto mais de ano e meio sem que se tenha registado qualquer incidente.

    14. O que contraria o receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.

    15. Por outro lado, não se pretendendo minimizar os factos, nem o sentimento que os mesmos poderão ter causado na assistente, terão de se qualificar de gravidade moderada.

    16. Não se justificando por isso, a aplicação da medida de segurança.

    17. A decisão recorrida violou os arts.º 14º, n.º 1, 26º, 152º, n.º 1, al. b) e ns.º 4 e 5 e 40º, n.º 3 do Código Penal.

    18. Fez um enquadramento jurídico inadequado, padecendo de erro na apreciação da prova.

      Termos em que se requer que seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva o arguido da prática do crime por que vinha acusado, ou caso assim não se entenda, que seja revogada a decisão recorrida no que respeita à medida de segurança imposta (…)».

      3. Respondeu o Ministério Público a este recurso, defendendo a sua improcedência.

    19. O Exmº Procurador da República neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.

      5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

      II.

      FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].

      Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, a questão a decidir consiste em saber se: 1º- houve ou não uma incorrecta apreciação da prova produzida em julgamento; 2º- houve uma errada qualificação jurídica dos factos apurados; 3º- se a medida de segurança aplicada foi desproporcional e excessiva.

    20. DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA E NÃO PROVADA NO ACÓRDÃO RECORRIDO (em transcrição) 2.1. A matéria de facto PROVADA é a seguinte: 1. «No final de Abril de 2018, o arguido AA e BB iniciaram uma relação de namoro, sendo que cada um dormia na sua casa, o que sempre sucedeu ao longo de toda a relação.

    21. Durante o período em que durou o relacionamento, BB residia na Rua ... ..., ..., ..., ao passo que o arguido residia Avenida CC, n.º ..., ..., ....

    22. O relacionamento que AA e BB mantinham era do conhecimento público, frequentando ambos espaços públicos, sendo apresentados aos pais de ambos como namorados, e, bem assim, a amigos e conhecidos.

    23. Em data não concretamente apurada, em Dezembro de 2018, BB decidiu terminar a relação e, no interior da residência do arguido, comunicou-lhe tal decisão, tendo-lhe explicado todos os motivos que a levaram a tomar tal decisão.

    24. Contudo, o arguido não aceitou o fim do relacionamento e, iniciando uma discussão, dirigiu à ofendida as expressões “és uma puta”, “só estás comigo por causa da cama”, “não vales nada”.

    25. Depois de AA lhe dirigir as expressões supra descritas e, sentindo-se humilhada, BB disse-lhe que se ia embora porque não merecia ouvir mais aquele tipo de palavras, dirigindo-se para a porta da rua.

    26. De imediato, AA impediu BB de sair de casa, tendo fechado a porta da residência à chave, colocando-se de costas para a porta e de frente para a ofendida.

    27. Após, o arguido, com as duas mãos, agarrou os ombros de BB e empurrou-a para trás, fazendo com que esta desse dois a três passos para trás, acabando por deixá-la sair, depois de muita insistência desta.

    28. Desde então, AA passou a ligar para os números de telemóvel da ofendida com frequência diária.

    29. E dirigiu-se, pelo menos, por três ou quatro vezes, à residência da ofendida, onde esperava que a mesma chegasse a casa e/ou falava com os pais desta, solicitando que estes o ajudassem a convencer a ofendida a reatar a relação de namoro.

    30. Das primeiras vezes, a ofendida atendeu as chamadas do arguido e recebeu-o, reiterando a decisão de término do relacionamento.

    31. Após, a ofendida deixou de atender as chamadas do arguido e de responder às mensagens, recusando, outrossim, falar presencialmente com o mesmo.

    32. Entre o verão de 2019 e Novembro de 2019, o arguido cessou os contactos frequentes, fazendo apenas algumas tentativas esporádicas de contacto...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT