Acórdão nº 6149/20.6T8VNG.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Maio de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução05 de Maio de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA, BB, CC e DD instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra EE e FF, pedindo: a) A condenação da 1.ª R. a pagar às AA. a quantia de € 9.286,79, acrescida de juros vincendos, calculados à taxa supletiva legal, que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento e, conjuntamente, b) A condenação da 2.ª R. a pagar às AA. a quantia de € 4.086,79, acrescida de juros vincendos, calculados à taxa supletiva legal, que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento e, conjuntamente, c) A condenação da 1.ª R. a comparticipar nas prestações vincendas, no montante de €40.090,80; d) A condenação da 2.ª R. a comparticipar nas prestações vincendas, no montante de €40.090,80, Subsidiariamente, e) Que as condenações das RR. no pagamento do montante global de € 93.557,18 sejam fixadas em quotas a definir, de acordo com os respectivos rendimentos de cada uma das RR. e na respectiva proporção, e, em qualquer caso, f) A condenação das RR. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no montante de € 30,00, por cada dia de atraso no pagamento das quantias devidas, nos termos do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil.

Alegam as AA., em síntese, que: - GG é progenitora das AA. e das RR. e aufere uma pensão mensal no montante de €205,00; - Atentos os parcos rendimentos de GG, as AA. têm vindo a prestar auxílio financeiro à sua mãe, o que sucede desde 2018, tendo despendido já a quantia a quantia de €55 720,74, por referência à data de 31.08.2020; - Tal quantia foi despendida para assegurar as necessidades básicas da mãe das AA. e RR. e ainda para fazer face a encargos da herança aberta por óbito de HH, de que são herdeiras GG, AA. e RR.; e que - Atentas as despesas da progenitora é previsível que, no horizonte temporal de 10 anos, GG despenda a quantia de €240.544,80, competindo a cada uma das filhas a quantia de €40.090,80, por referência ao mesmo período de 10 anos.

Entendem, assim, as AA. que os encargos com o sustento de GG e, bem assim, com a administração da herança aberta por óbito de HH devem ser suportados em partes iguais por todas as suas filhas, AA. e RR. nos autos.

Contestaram as RR., invocando a ilegitimidade das AA., uma vez que a mãe das AA. e RR. é maior e capaz, de tal forma que é cabeça-de-casal no processo de inventário que corre termos no Juízo Local Cível ..., Juiz ..., com o n.º 2023/20...., por morte do pai das AA. e RR..

Excepcionam ainda as RR. a sua ilegitimidade, alegando, para o efeito, que a acção teria de ser intentada contra a herança e não contra as demandadas, herança essa onde a mãe é cabeça-de-casal e que tem bens que podem ser arrendados.

Responderam as AA., sustentando a sua legitimidade na presente acção, alegando, em síntese, que cumprem, voluntariamente e na íntegra, a obrigação que impende sobre as partes e que emerge dos deveres de auxílio e de assistência para com a mãe das AA. e RR., já que aquela carece desse auxílio, assistência e apoio, mas que tal facto não desonera as RR. de comparticipar no mesmo auxílio nem do dever legal de reembolsar as AA. por satisfazerem, sozinhas, uma obrigação que é de todas as filhas. Pretendem as AA. serem reembolsadas dos gastos que tiveram com o cumprimento de uma obrigação que também impende sobre as RR..

Sustentam ainda as AA. a legitimidade das RR., alegando, em síntese, que as RR. podiam ter requerido a divisão da herança e nunca o fizeram.

Por saneador/sentença de 17 de Fevereiro de 2021 foi proferida a seguinte decisão: «a) julgam-se as Autoras parte ilegítima na presente acção, no que respeita ao pedido de condenação das Rés a comparticiparem nas prestações vincendas e, nessa parte, absolvem-se as Rés da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 278.º, n.º 1, al. d), 577.º, al. e) e 578.º, todos do Cód. Processo Civil; b) julgam-se as Rés parte ilegítima na presente acção, no que respeita ao pedido de condenação no pagamento das quantias correspondentes à sua comparticipação nas despesas com a preservação do património que integra o acervo hereditário e, nessa parte, absolvem-se as Rés da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 278.º, n.º 1, al. d), 577.º, al. e) e 578.º, todos do Cód. Processo Civil; c) No mais, julga-se a presente acção improcedente e, consequentemente, absolvem-se as Rés do pedido.».

Inconformadas, as AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação ..., pedindo a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 28 de Outubro de 2021 o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

  1. Vieram as AA. interpor recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento no art. 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil, o qual foi admitido, em 3 de Março de 2022, por acórdão da Formação prevista no n.º 3 do mesmo art. 672.º.

  2. Formularam as Recorrentes as seguintes conclusões (não se excluem as conclusões relativas à admissibilidade do recurso por se entender que as considerações gerais nelas tecidas permitem enquadrar as questões recursórias formuladas a partir da conclusão 11ª)): «1) As Recorrentes pretendem ver esclarecida a questão, dotada de franco ineditismo e que se reveste de verdadeira complexidade, até pelo próprio impacto que tal pode ter na sociedade e no sistema de administração de justiça, bem como nas traves-mestras do Estado de direito democrático 2) Lograram as Recorrentes demonstrar e justificar a relevância jurídica e social, nos termos do preceituado no artigo 672.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC posto que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, torna o presente recurso claramente necessário para uma melhor aplicação do direito bem como o mesmo é necessário por estarem em causa interesses de particular relevância social.

    3) O dever de auxílio de filhos a pais e a necessidade de, por via da interpretação, designadamente por aplicação analógica, haver uma efetiva necessidade de alargar os legitimados a exigir alimentos para o pai que dos mesmo careça, sobretudo, por banda daqueles filhos que estão a cumprir tal obrigação, de forma a obviar o constrangimento e o sofrimento que representa para um pai demandar um/a filho/a judicialmente.

    4) Pelo que se requer, em face da fundamentação supra e da demonstrada justificada relevância jurídica da questão a apreciar seja admitido presente Recurso de Revista Excecional.

    5) Não há dúvidas que estamos perante uma lacuna existente na lei e, por via interpretativa, de acordo com as boas regras da hermenêutica jurídica, é patente que está detetada uma disfunção, no sistema jurídico português.

    6) A cargo dos filhos encontra-se também o dever de assistência para com os pais, dever este que encontramos também ínsito no mencionado artigo 1874.º do Código Civil, que prevê que, pais e filhos devem-se mutuamente assistência, sendo que o n.º 2 deste artigo expressa que o dever de assistência abrange a obrigação de prestar alimentos e de contribuir, de acordo com os próprios recursos, para os encargos da vida familiar, norma que nos autos resulta, pois violada.

    7) Ao que acresce dizer que a recusa de auxílio foi encarada pelo legislador português de forma tão severa a mesma pode ter por consequência a deserdação do herdeiro legitimário, conforme resulta da alínea c), do nº 1, do artigo 2166.º do Código Civil.

    8) Também ficam as Recorridas inconformadas com o entendimento do Tribunal a quo para além da ação de alimentos prevista no artigo 2006.º CC nada obsta a que seja acionado o instituto da responsabilidade civil, com a correspondente obrigação de indemnização, a quem viole os deveres a que se encontra adstrito, desde que cumpridos os critérios de acionamento da responsabilidade civil, porquanto a conduta omissiva quanto à ausência de cuidados e de alimentos das filhas Recorridas, para com a sua mãe, corresponde a um ilícito civil, por omissão, que viola direitos juridicamente tutelados, tendo os pais o direito de exigir uma indemnização aos filhos pelos danos causados, acrescendo sempre que a falta de cuidado dos filhos em relação aos pais corresponde a um abandono afetivo, pelo que este ato ilícito corresponde a um dano não patrimonial indemnizável.

    9) Este tema é pungente nas sociedades atuais cujo incumprimento tem consequências legais, mas sobretudo sociais, pelo que não podem os filhos, por facilidade e /ou comodidade, por ausência de espírito de sacrifício descartarem-se dos pais.

    10) Muito menos votarem-nos ao abandono, como sucede no caso dos autos e a ordem jurídica acolher a postura de descaso que as Recorridas adotam quanto ao sacrifício patrimonial que infligem à mãe, no plano jurídico.

    11) Com todo o respeito e urbana discordância, decidiu sem acerto, na esteira da primeira instância, a Veneranda Relação ... que “Cabendo ao ascendente necessitado o direito de exigir o cumprimento da obrigação de prestar alimentos aos descendentes que se encontrem em condições de lhos prestar, terá forçosamente de se concluir que a relação material controvertida, tal como é configurada pelas Autoras, tem como sujeito, do lado activo, a sua mãe, e não as Autoras.” 12) É ponto assente que o legislador do CC de 1966 resolveu a questão para as situações em que não é de todo cumprido o dever de prestar alimentos e o progenitor que dos mesmos necessita pretende intentar a ação de alimentos, prendendo-se o descontentamento das Recorrentes com o facto de, na verdade, a situação não estar acautelada, na Lei adjetiva pátria para as situações apenas um grupo de obrigados (ou dito de outro modo, alguns dos obrigados: no caso 4 (as AA.) das 6 filhas que a alimentanda possui, a prestar alimentos e o auxílio previstos na Lei, situação em que carece de causa de pedir a ação a intentar, pela mãe das AA. e RR.

    13) Mais se considerando o facto de estarmos perante pessoa idosa, cardíaca e de arreigados princípios éticos que não queira ver-se envolvida numa contenda...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT