Acórdão nº 303/22 de Tribunal Constitucional (Port, 27 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução27 de Abril de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 303/2022

Processo n.º 317/2021

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), o Ministério Público interpôs recurso, para si obrigatório, da sentença proferida a 20 de janeiro de 2021 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Penafiel.

No requerimento de interposição de recurso, peticiona a apreciação da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril (doravante NRFGS), «quando estabelece como critério de fixação do limite de garantia (plafond legal) a retribuição do trabalhador, determinando um nível de proteção quantitativamente inferior aos trabalhadores com salário menor».

2. Admitido o recurso e remetidos os autos a este Tribunal, foi determinado o seu prosseguimento. O Ministério Público apresentou alegações, concluindo pela procedência do recurso de constitucionalidade, com os seguintes fundamentos:

“A questão de constitucionalidade que agora constitui objecto do recurso, já foi trazida ao Tribunal Constitucional em quatro processos nos quais, oportunamente, o Ministério Público apresentou Alegações (Proc. n.º 1205/19, 3.ª Secção, Proc. n.º1206/19, 1ª Secção e Proc. n.º 213/2020, da 2ª Secção e 300/2021, da 3ª Secção).

Iremos pois, seguidamente, transcrever a parte pertinente das Alegações então apresentadas:

‘III

1. É o seguinte o teor do n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril:

“O Fundo assegura o pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, referidos no n.º 1 do artigo anterior, com o limite máximo global equivalente a seis meses de retribuição, e com o limite máximo mensal correspondente ao triplo da retribuição mínima mensal garantida”.

IV

2. Conforme resulta com evidência do conteúdo dos excertos da decisão impugnada que acabamos de reproduzir, imputa esta à norma legal contestada, a ínsita no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, a violação do princípio da igualdade, na medida em que “estabelece um limite máximo à responsabilidade da entidade demandada que é variável em função do salário dos trabalhadores: quanto maior o salário maior a responsabilidade que o FGS assume no pagamento dos créditos laborais em caso de insolvência”.

3. Perante a opinião acabada de exprimir e que sustenta a douta decisão recorrida, cabe-nos começar por apurar quais os objecto e fins do Fundo de Garantia Salarial e, bem assim, qual a natureza dos créditos a cujo cumprimento se encontra vinculado.

4. Se atentarmos no teor do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, apuramos que:

No novo regime, o FGS continua a surgir como um fundo autónomo que não integra o âmbito de proteção social garantido pelo sistema de segurança social, antes com este se relacionando, quer pela via de parte do seu financiamento, quer pela via da sua gestão entregue ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P. (IGFSS, I. P.)”.

5. Ou seja, distintamente do pressuposto pelo Mm.º Juiz “a quo”, que afirma que “o mecanismo de proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência da entidade empregadora tem objetivos marcadamente sociais de quem pode ficar mais fragilizado, ou em maiores dificuldades, na sequência da declaração de insolvência”, o legislador do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, esclarece que o Fundo de Garantia Salarial não integra o âmbito de protecção social garantido pelo sistema de segurança social.

6. Para além disso, clarifica, igualmente, o legislador ordinário no n.º 1, do artigo 1.º do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, que o Fundo de Garantia Salarial “(…) assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação”.

7. Ou seja, os créditos cujo pagamento é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, dos quais os trabalhadores são titulares, correspondem a dívidas pré-existentes emergentes de contratos de trabalho, contraídas pelos empregadores, nos casos em que ocorra uma das situações elencadas no n.º 1, do artigo 1.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril.

8. Comprovando esta asserção, se necessário fosse, encontra-se a circunstância plasmada no n.º 1, do artigo 4.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, de o Fundo ficar “sub-rogado nos direitos e nos privilégios creditórios do trabalhador, na medida dos pagamentos efetuados, acrescidos de juros de mora vincendo”.

9. Atento o exposto, facilmente apuramos que o Fundo de Garantia Salarial substitui-se aos empregadores, com as condições e os limites elencados no Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, no pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação pré-existentes, de que os trabalhadores já eram, consequentemente, titulares.

10. Tais créditos, os previstos na norma legal geral e abstracta agora contestada, porque potencialmente emergentes de distintos contratos de trabalho, celebrados com diferentes trabalhadores, virtualmente possuidores de inúmeras e díspares competências académicas e aptidões profissionais e tendo por objecto as mais heterogéneas funções e tarefas, nunca poderiam deixar de se consubstanciar em pagamentos «quantitativamente» desiguais e em garantias desses pagamentos também «quantitativamente» desiguais.

11. Aliás, adiantemo-lo já, se a lei ordinária tratasse todos os trabalhadores, independentemente das suas tarefas, obrigações laborais, competência, formação, responsabilidades, riscos de actividade, tempo de serviço ou experiência profissional, do mesmo modo, em termos «quantitativamente» iguais, aí sim, deparar-nos-íamos com uma evidente violação do princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, na sua dimensão de igualdade da retribuição do trabalho, proclamada na alínea a), do n.º 1, do artigo 59.º, do Texto Fundamental.

12. Com efeito, não nos esqueçamos de qual o entendimento sobre o princípio constitucional da igualdade que vem, de há muito, a ser adoptado pelo Tribunal Constitucional, e bem exemplificado, entre outros, no seu douto Acórdão n.º 412/02, no qual se esclarece que:

“O princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes: a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira, a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais (tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente); a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjectivos (v.g., ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social) e, a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.

(…)

Também no Acórdão nº. 409/99, de 29 de Junho, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 44º, págs. 461 a 485, se disse:

O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional”.

13. Ora, no que concerne ao tratamento distinto de situações qualitativa e quantitativamente distintas, como as que se alicerçam no prescrito no n.º 1, do artigo 3.º, do Novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, ele, não se revelando infundadamente discriminatório, dá, ao contrário do sustentado na douta decisão recorrida, cumprimento ao imposto pelo princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa.

14. Princípio da igualdade este que, no domínio laboral, exibe como seu afloramento o conteúdo da alínea a), do n.º 1, do artigo 59.º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o sub-princípio de que «para trabalho igual salário igual».

15. Acontece que, também no que respeita a este princípio – ou sub-princípio – a jurisprudência do Tribunal Constitucional é inequívoca no sentido da obrigatoriedade de ser dado tratamento igual a realidades iguais mas, simultaneamente, de ser dado tratamento diferente, e na medida dessa diferença, a realidades distintas.

16. Com efeito, diz-nos o Tribunal Constitucional, no seu douto Acórdão n.º 584/98, com relevância para a presente discussão, que:

“(…) [A] justiça exige que, quando o trabalho prestado for igual em quantidade, natureza e qualidade, seja igual a remuneração. E reclama (nalguns casos, apenas consentirá) que a remuneração seja diferente, pagando-se mais a quem tiver melhores habilitações ou mais tempo de serviço. Deste modo se realiza a igualdade, pois que, como se sublinhou no acórdão n.º 313/89, (publicado nos Acórdão do Tribunal Constitucional, 13º volume, tomo II, páginas 917 e seguintes), do que no preceito constitucional citado se trata é de um direito de igualdade.

17. Mais adiante no mesmo...

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