Acórdão nº 07/22.7YFLSB de Tribunal dos Conflitos, 19 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução19 de Abril de 2022
EmissorTribunal dos Conflitos

Acordam, no Tribunal dos Conflitos: 1. Em 17 de Março de 2021, GUIA - Sociedade de Construções e Turismo, S.A.

intentou no Juízo Central Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste uma ação contra AA, formulando os seguintes pedidos: “1. Ser a Ré condenada a demolir totalmente as obras realizadas no seu imóvel sem controlo prévio e em violação das normas e prescrições urbanísticas aplicáveis, por serem insuscetíveis de legalização; 2. Ser a Ré condenada a repor o seu imóvel (terreno e edificação original) nas condições em que se encontravam antes do início das obras ou trabalhos ilegais, nos exatos termos das licenças que hajam sido validamente emitidas pela Câmara Municipal ... para o imóvel da Ré; 3. Ser a Ré condenada a pagar à Autora, a título de indemnização por danos patrimoniais sofridos, a quantia de EUR 109.001,98”.

Segundo alega, com a presente ação, a autora “visa obter o reconhecimento e a declaração judicial de que a ré realizou, ou mantém, obras de construção, de alteração e de ampliação no seu imóvel, que constitui a ... (Moradia) n.º ..., sita no ... da ..., em ..., sem a licença ou comunicação prévia legalmente exigidas e em violação dos Alvarás de Loteamento e dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis.” Mais alega pretender, também, “obter o reconhecimento e a declaração judicial de que a situação atual do imóvel propriedade da ré, resultante da realização das indicadas obras, configura um ilícito urbanístico que provoca, e continuará a provocar, danos à autora suscetíveis de serem indemnizados”, que, designadamente, sem excluir, (í) desvalorizam o valor comercial dos imóveis propriedade da Autora vizinhos do imóvel propriedade da Ré e (ii) afetam o exercício da atividade comercial da Autora de rentabilização dos imóveis de sua propriedade, quer por via da sua locação, quer por via da sua comercialização.” Acrescenta que a presente ação visa apurar a responsabilidade civil extracontratual da ré para com a autora.

A ré contestou, excepcionando, além do mais, a incompetência material do Tribunal, por não estar em causa, nem “uma relação de vizinhança ou qualquer outra questão de natureza civil”, nem “uma questão de natureza incidental face às restantes pretensões formuladas pela autora”, mas antes um pedido de natureza administrativa, “que consiste em saber se as licenças emitidas para o imóvel comportam a realização de obras de construção, alteração ou ampliação e se a eventual falta de licenciamento para tais obras implica a sua demolição; só a partir deste ponto é possível falar em responsabilidade por actos ilícitos”.

Concretizou que “a relação jurídica envolvida nos pedidos (…) de demolição das obras e reposição do imóvel no estado anterior ao início das obras reconduz-se, em primeira fase, na apreciação da relação urbanística entre a contestante e a Administração Pública e à qualificação jurídica dos actos subjacentes e, só depois de esta ser certa para o direito, a, em segunda fase, à reparação da lesão do interesse público, que só em situações extremas passará pela demolição (102.º a 106.º do RJUE) e só mais tarde, depois de ter sido dirimida a questão jus publicista e havendo a prática de ato ilícito pelo particular, assim declarado pelas autoridades competentes, poderá haver lugar ao apuramento da eventual responsabilidade da contestante pela ofensa a direitos e interesses legalmente protegidos da demandante”.

Concluiu que, estando em causa uma relação jurídica administrativa, a competência para julgar a acção cabe à jurisdição administrativa, nos termos dos artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 4.º, n.º 1, alínea k), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “pois os actos das autarquias locais, no exercício de funções públicas, são da competência dos tribunais administrativos e fiscais”.

Notificada, a autora respondeu à excepção.

Sustentou, em suma, serem irrelevantes para o julgamento da presente acção as consequências administrativas da realização de obras sem licenciamento prévio, afirmou estar em causa uma relação puramente civil e reafirmou a competência dos tribunais comuns para a apreciação da causa.

  1. Por despacho de 23 de Janeiro de 2022, o Juiz ... do Juízo Central Cível de Cascais, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, dirigiu oficiosamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos sobre a questão da jurisdição competente para conhecer da presente acção.

    Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 16 de Fevereiro de 2022, admitiu a consulta, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos).

    Notificada, a autora reiterou o entendimento de que cabe aos Tribunais comuns a competência para o conhecimento da causa, alegando, em suma, que os seus pedidos se fundam numa relação de vizinhança entre as partes (privadas) e nos danos que o imóvel da ré (no estado de construção em que se encontra e pela desvantagem económica que representa) provocam na sua esfera patrimonial.

    Notificada para os mesmos efeitos, a ré pronunciou-se pela atribuição à jurisdição administrativa da competência para o conhecimento da lide, reafirmando estar em causa uma relação jurídica administrativa, porquanto a acção assenta na alegada clandestinidade, ilicitude ou ilegalidade na realização de obras de construção, alteração ou ampliação no imóvel da propriedade da ré.

    Nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de competir à jurisdição comum o conhecimento da presente acção, uma vez que, “tal como a A. configura a acção, verifica-se que os pedidos são dirigidos contra...

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