Acórdão nº 255/22 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelCons. José João Abrantes
Data da Resolução05 de Abril de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 255/2022

Processo n.º 963/2021

Plenário

Relator: Conselheiro José João Abrantes

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. A Procuradora-Geral da República, ao abrigo dos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea e), e 282.º da Constituição da República Portuguesa, 51.º a 56.º e 62.º a 66.º da Lei do Tribunal Constitucional (“LTC”), e 19.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, vem requerer a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral:

(i) da inconstitucionalidade orgânica das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho (cfr. artigos 3.º, n.º 3, 112.º, n.ºs 2 e 3, 164.º, alínea i), 198.º, n.º 1, alínea c), e 277.º, n.º 1, da CRP);

(ii) da inconstitucionalidade material do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho, por referência à alínea b) (ensino individual) e à alínea c) (ensino doméstico) do n.º 1 (cfr. artigos 3.º, n.º 3, 111.º, n.º 2, 112.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5, 164.º, alínea i), e 277.º, n.º 1, da CRP);

(iii) da inconstitucionalidade orgânica das normas da Portaria n.º 69/2019, de 26 de fevereiro (cfr. artigos 3.º, n.º 3, 112.º, n.ºs 2 e 3, 164.º, alínea i), e 277.º, n.º 1, da CRP).

Requereu, ainda, a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de modo a que os mesmos se produzam apenas a partir da publicação da decisão a proferir (i.e., ex nunc), nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da CRP.

2. A Procuradora-Geral da República fundamentou o seu pedido nos termos que constam de fls. 3 a 34, extraindo as seguintes conclusões:

«(…)

a) "Bases" do sistema de ensino

58.º

A Constituição garante, como direito fundamental, de caráter pessoal, a liberdade de aprender e ensinar (art. 43.°, n.° 1).

59.º

A esta norma constitucional, material, corresponde uma norma constitucional de competência legislativa, que estabelece uma reserva absoluta da Assembleia da República para legislar sobre as "bases do sistema de ensino" (art. 164.°, alínea i).

60.º

E, finalmente, ainda lhe corresponde uma norma constitucional de valor hierárquico, a qual estabelece que tal lei de bases tem valor reforçado, em virtude da subordinação à mesma dos decretos-leis que desenvolvam essas bases gerais do regime jurídico do sistema de ensino (art. 112.°, n.° 2 e 3).

61.º

A Assembleia da República, precisamente no exercício dessa sua reserva absoluta de competência legislativa, decretou a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo [doravante, LBSE]), sucessivamente alterada sucessivamente alterada pela Lei n.° 115/97, de 19 de setembro, pela Lei n.° 49/2005, de 30 de agosto, e pela Lei n.° 85/2009, de 27 de agosto).

62.º

No elenco das "modalidades especiais de educação escolar", previstas na LBSE, não consta o ensino individual, nem o ensino doméstico (mas apenas, cotejando com o elenco das alíneas a), b) e c), do n.° 1 do artigo 8.° do Decreto Lei n.° 55/2018, de 6 de julho, o ensino a distância).

63.º

Por outra parte, na habilitação legal consubstanciada nos n.ºs 1 e 2, do artigo 62.° (Desenvolvimento da lei) da LBSE, no elenco dos domínios tipificados como idóneos ao "desenvolvimento" da mesma, não constam as modalidades educativas e formativas, nem do ensino individual, nem do ensino doméstico (do ensino básico e do ensino secundário).

64.º

Portanto, a LBSE não institui — nem estabelece, naturalmente — as modalidades educativas e formativas do ensino individual e do ensino doméstico, do ensino básico e secundário.

65.º

Ulteriormente, "no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada pela Lei n.° 46/86, de 14 de outubro, na sua redação atual, e nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 198.° da Constituição",

66.º

o Governo emanou o Decreto-Lei n.° 55/2018, de 6 de julho (Estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário e os princípios orientadores da avaliação das aprendizagens).

67.º

Quanto às normas jurídicas expressas pelo n.° 1, alíneas b) e c), do artigo 8.°, ipso iure, têm efeito jurídico inovatório do sistema educativo tal como estruturado na LBSE, na medida em que instituem, duas novas modalidades educativas e formativas do ensino básico e secundário, o ensino individual e ensino doméstico, que aquela lei não prevê.

68.º

Quanto à norma jurídica expressa pelo n.° 2 do artigo 8.°, com referência às alíneas b) e c), do n.° 1, contém uma habilitação legal para a emissão de um regulamento governamental, no caso uma portaria, a emanar pelos membros do Governo responsáveis pela área da educação e, sempre que aplicável, pela área da formação profissional, para a "regulamentação" das modalidades educativas e formativas do ensino individual e do ensino doméstico.

69.º

Quanto à Portaria n.° 69/2019, de 26 de fevereiro, foi emitida com invocação "do disposto no n.° 2 do artigo 8.° do Decreto-Lei n.° 55/2018, de 6 de julho", por força do qual "manda o Governo, pelo Secretário de Estado da Educação...".

70.°

No artigo 1.° (Objeto) estabelece como sua finalidade "procede[r] à regulamentação das modalidades educativas de ensino individual e de ensino doméstico previstas, respetivamente, nas alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 8.° do Decreto-Lei n.° 55/2018, de 6 de julho, definindo as regras e procedimentos relativos à matrícula e frequência, bem como o processo de acompanhamento e a certificação das aprendizagens, tendo em vista o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória".

71.°

No mais, todos os preceitos desta Portaria, um por um e no seu conjunto, estabelecem a "regulamentação" (rectius, o regime jurídico, regras e procedimentos, quanto a matrícula, frequência, processo de acompanhamento e certificação das aprendizagens) dessas modalidades educativas de ensino individual e de ensino doméstico (arts. l.° a 23.°).

b) Análise de constitucionalidade: Decreto-Lei n.° 55/2018, de 6 de julho

72.°

O Decreto-Lei n.° 55/2018, de 6 de julho, e seus preceitos, não contêm qualquer "desenvolvimento" de prévias "bases" parlamentares em matéria de ensino individual e de ensino doméstico, antes o instituem e transferem para uma autoridade e um regulamento governamental, especificamente uma portaria, sem mais e in toto, a competência para estabelecer o regime jurídico do ensino individual e do ensino doméstico, como seguidamente vai discriminado.

73.°

As normas jurídicas expressas pelo n.° 1, alíneas b) e c), do artigo 8.°, do Decreto-Lei n.° 55/2018, de 6 de julho ipso iure, têm efeito jurídico inovatório do sistema educativo tal como estruturado na LBSE, na medida em que instituem duas novas modalidades educativas e formativas do ensino básico e secundário, o ensino individual e ensino doméstico, que aquela lei não prevê.

74.°

Porém, a instituição de duas novas, com relação à precedente situação estabelecida na LBSE, modalidades educativas e formativas, do ensino básico e secundário, como são o ensino individual e o ensino doméstico é, por definição, matéria atinente às "bases" do sistema de ensino, essa é a sua sedes materiae.

75.º

Pois, por uma parte, a instituição de duas novas modalidades educativas e formativas do ensino básico e secundário, como são o ensino individual e o ensino doméstico, está, lógica e contextualmente, vinculada ao estabelecimento das respetivas "bases".

76.°

Ou seja, tal decisão consubstancia uma "base" legislativa, no sentido de "opção político-legislativa fundamental", quanto à estruturação das ofertas do "sistema de ensino".

77.°

Finalmente, em conformidade, é exclusivamente competente para consagrar tais opções (sei., criar e estabelecer as respetivas "bases") a lei parlamentar, precisamente de "bases do sistema educativo", já o decreto-lei apenas está habilitado, constitucional e legalmente, para "desenvolver" as "bases", estabelecidas na lei parlamentar, de "bases do sistema de ensino".

78.°

Assim sendo, concluímos que as normas jurídicas constantes, respetivamente, das alíneas b) e c) do n.° 1 do artigo 8.° do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho, ao instituírem estas duas novas modalidades formativas e educativas, do ensino básico e secundário, o ensino individual e o ensino doméstico, assumiram uma competência legislativa reservada em exclusivo à lei parlamentar, e como tal são organicamente inconstitucionais (Constituição, arts. 3.°, n.° 3, 112.°, n.°s 2 e 3, 164.°, al. i), e 198.°, n.° 1, al. c, e 277.°, n.° 1).

79.°

Já as normas jurídicas constantes do n.° 2, com referência à alínea b) do n.° 1, e, depois, do n.° 2, com referência à alínea c) do n.° 1, do artigo 8.° do Decreto- Lei n.° 55/2018, de 6 de julho, respetivamente quanto ao ensino individual e ao ensino doméstico, consubstanciam dois atos de deslegalização de matéria de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, através da transferência desses poderes, sem mais e in toto, para uma autoridade e um regulamento governamental, especificamente uma portaria, e, como tal, são materialmente inconstitucionais (Constituição, arts. 3.°, n.° 3, 111.0, n.° 2, 112.°, n.°s 1, 2, 3, e 5, e 164.°, alínea i, e 277.°, n.° 1).

c) Análise de constitucionalidade: Portaria n.° 69/2019, de 26 de fevereiro

80.°

Quanto à Portaria n.° 69/2019, de 26 de fevereiro, por uma parte, sendo antecedentemente inconstitucionais as habilitações legais constantes das normas jurídicas do n.° 2, com referência à alínea b) do n.° 1, e, depois, do n.° 2, com referência à alínea c) do n.° 1, todos do artigo 8.° do Decreto-Lei n.° 55/2018, de 6 de...

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