Acórdão nº 191/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução17 de Março de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 191/2022

Processo n.º 46/20

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Ribeiro

Acórdão na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos de execução fiscal, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., SGPS, SA e recorrida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), o Ministério Público, ao abrigo do artigo 280.º, alínea a) do n.º 1, e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), interpõe recurso, para si obrigatório, do acórdão da Secção do Contencioso Tributário (2.º Secção) daquele Tribunal, datado de 6 de novembro de 2019, que julgou organicamente inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 147.º do Código das Sociedades Comerciais, com a consequente procedência do recurso e extinção da execução.

2. Recebido o recurso, o Ministério Público apresentou alegações neste Tribunal, onde conclui o seguinte:

1.ª - Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do estatuído nos artigos 280.º/1/a) / 3 da CRP e 70.º/1/a) e 72.º/3 da LTC (Lei 28/82, de 15 de novembro) do acórdão de 06/11/2019 [do Supremo Tribunal Administrativo – 2.ª secção/Contencioso Tributário, proc. n.º 1173/16-30/Recursos jurisdicionais, fls. 404 a 429] no segmento em que julgou organicamente inconstitucional a norma contida no art.º 147.º/2 do CSC. De facto, sustenta a decisão recorrida que a definição dos pressupostos legais da responsabilidade tributária, seja subsidiária ou solidária, integra matéria de incidência subjetiva ou de garantias dos contribuintes. Assim, no entender da decisão recorrida, o normativo do artigo 147.º/2 do CSC, de caráter inovatório, interpretado, como deve ser interpretado, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica, no sentido de estabelecer uma responsabilidade solidária e ilimitada por dívidas de terceiro, é organicamente inconstitucional, por violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da reserva de lei parlamentar, ínsito nos artigos 103.º/2 e 165.º/1/ i) (a que correspondem os artigos 168.º/1/i) e 106.º/2 da CRP, na versão vigente à data da em entrada em vigor do CSC), uma vez que o normativo em causa não foi criado por Lei da Assembleia da República ou por Decreto-Lei autorizado, mas sim pelo DL 262/86, de 02/09, emitido ao abrigo do, então, artigo 201.º/1/ a) (atual artigo 198.º/1/ a)) da CRP”.

2.ª - O discurso em que se funda esta tese da inconstitucionalidade orgânica procede de três proposições fundamentais, quanto ao caráter da norma jurídica constante do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, a qual, segundo tal ponto de vista, é de “incidência subjetiva” ou de “garantia dos contribuintes”, de “responsabilidade tributária” e inovatória, premissas essas que não podemos subscrever e pretendemos refutar, nos termos subsequentes.

3.ª - Antes, importa referir que para apreciar esta questão de constitucionalidade, como pressuposto lógico e pragmático do juízo de constitucionalidade, é necessário proceder à determinação do sentido de diversos preceitos da lei ordinária, muito em particular da norma jurídica expressa pelos preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º, e n.º 1 do artigo 156.º, todos do CSC, justamente a exceção típica aos limites do conhecimento do direito infraconsitucional, em sede da jurisdição constitucional.

4.ª - A história, a letra, o sistema e o sentido da lei, bem como a melhor doutrina, são concordes em reconhecer o caráter dipositivo (permissivo) do instituto da partilha imediata, tal como previsto, nomeadamente, no n.º 1 do 147.º do CSC.

5.ª - Os preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º do CSC consagram um direito subjetivo societário à partilha imediata, subsequente à dissolução da sociedade, cujo exercício determina, ipso jure, a constituição de uma situação jurídica complexa, integrada, nomeadamente, pela responsabilidade de todos os sócios pelas dívidas de natureza fiscal, ainda não exigíveis à data da dissolução, ilimitada e solidariamente.

6.ª - Essa responsabilidade, que é uma adstrição ao cumprimento de um dever de prestar decorrente de um facto tributário de outrem (KELSEN), é imperativa, sim, mas apenas no pressuposto de previamente ter ocorrido o livre exercício do direito subjetivo societário da partilha imediata.

7.ª - Portanto, a responsabilidade não decorre imediatamente da lei, antes apenas vem a ser constituída, por virtude da autonomia de vontade dos sócios, através do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, como efeito necessário, correlativo daquela opção societária.

8.ª - A constituição dessa responsabilidade dos sócios, ilimitada e solidariamente, enquanto efeito necessário do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, visa, segundo o comentário mais autorizado, prevenir “a hipótese de uma dissolução destinada, precisamente, a defraudar o fisco” (JOANA PEREIRA DIAS e CAROLINA CUNHA).

9.ª - Este sentido dispositivo (permissivo) do regime legal está consubstanciado na vontade societária da “B., S. A.”, pois na sequência da respetiva dissolução, em 29 de abril de 2008, dispensando a liquidação, deliberou a partilha imediata dos haveres sociais, expressamente assumiu ilimitadamente as eventuais dívidas de natureza fiscal não exigíveis à data e, bem assim, a representação da sociedade extinta em eventuais atos futuros decorrentes desta liquidação e dissolução, nomeadamente junto da administração fiscal e, não menos importante, afetando a verba de € 523.168,50, então recebida, às despesas de liquidação e os reembolsos, devoluções e pagamentos a efetuar.

10.ª - O comentário societário de referência (RAUL VENTURA), quer no âmbito do direito antigo (artigos 130.º a 143.º do Código Comercial) quer, com especial relevância no caso em apreço, no âmbito do direito vigente (especificamente dos artigos 146.º, 147.º e 156.º do Código das Sociedades Comerciais), sublinha o caráter dispositivo do regime legal em causa.

11.ª - O sentido da douta declaração de voto, de vencido, exarada no acórdão recorrido, em substância, concorre com este entendimento, ao ajuizar que “o n.º 2 do 147.º do CSC não pode ser tomado como um "caso de "responsabilidade tributária", antes “estamos perante uma transmissão do dever de cumprir uma obrigação fiscal e não perante a constituição ex lege de uma obrigação fiscal na esfera do transmissário”, sendo que “o ou os transmissário(s) recebem a parte dos bens resultante da partilha e assume(m), por força da sua opção (a partilha imediata tem de ser requerida pelos beneficiários), o ónus do pagamento das "dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução".

12.ª - O princípio da legalidade fiscal, como reserva de lei formal, tem subjacente uma ponderosa razão substantiva, que lhe determina respetiva feição e função: a tributação deve proceder da vontade dos cidadãos para ser, em razão do prévio autoconsentimento, antes que imposição, uma genuína autoimposição (Nil de nobis, sine nobis!) [CARDOSO DA COSTA, CASALTA NABAIS, JESCH e HEY].

13.ª - A responsabilidade dos sócios, ilimitada e solidária, pelas dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução, em sede da partilha imediata nos termos do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, não decorre, imediata e inelutavelmente da lei, mas da vontade societária.

14.ª - Portanto, tal responsabilidade procede da autonomia da vontade dos sócios, após a dissolução da sociedade, expressa através do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, que tem como efeito necessário a constituição da posição jurídica passiva de responsabilidade.

15.ª - Assim, a norma jurídica constante, nomeadamente, do n.º 2 do artigo 147.º do CSC, não é uma norma de incidência subjetiva do imposto, ao menos para efeitos do princípio da legalidade, como reserva de lei formal.

16.ª - Por conseguinte, no caso não é necessária a intervenção parlamentar, pois aqui a assunção da responsabilidade pelo pagamento da dívida tributária está na inteira dependência de uma prévia e expressa manifestação de autonomia da vontade societária dos visados, através do exercício do direito subjetivo societário à partilha imediata, ou seja, não é necessária a proteção da lei perante a deslocação patrimonial, já que a garantia dos contribuintes está confiada pela lei ao consentimento dos próprios interessados, os sócios.

17.ª - Portanto, não sendo a norma jurídica constante do n.º 2 do artigo 147.º do CS de incidência subjetiva do imposto, não há nela antagonismo com o preceituado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição, que reserva para a lei, designadamente, a determinação da incidência (subjetiva) do imposto.

18.ª - A responsabilidade tributária (ou fiscal) “verifica-se quando, ao lado do sujeito passivo, outra ou outras pessoas ficam também sujeitas por força da lei ao pagamento do imposto devido pelo primeiro. Referindo-se a estas pessoas, fala então a lei de «responsáveis» ou, mais frequentemente, de «responsáveis subsidiários» ou «responsáveis solidários»” (CARDOSO DA COSTA).

19.ª - Aqui, em sede de responsabilidade tributária, como ali, em sede da incidência subjetiva do imposto, não é por força da lei, mas por efeito de uma manifestação de autonomia da vontade societária, exercendo o direito subjetivo societário à partilha imediata expresso nos preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 2 do artigo 147.º do CSC, que fica constituída responsabilidade de todos os sócios, ilimitada e solidária, pelas dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução.

20.ª - Também aqui, portanto, não sendo caso de responsabilidade tributária, não há verdadeiramente violação do preceituado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição, que reserva para a lei, designadamente, a determinação dos responsáveis pelo imposto, que estão...

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