Acórdão nº 01424/12.6BESNT de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 10 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelANA PAULA PORTELA
Data da Resolução10 de Março de 2022
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: 1.

A………… e B………… vêm interpor recurso jurisdicional de revista para este STA do acórdão do TCAS proferido em 30.04.2020, que negou provimento ao recurso que interpuseram do saneador – sentença de 9.12.2014, proferido pelo TAF de Sintra, que julgou improcedente a ação por si intentada, contra a [Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P.E. e CP – Caminhos de Ferro Portugueses] com fundamento na prescrição do direito dado o prazo prescricional ter começado a correr em 19/09/2008 e terminado em 19/09/2011, tendo os A. intentado a ação em 19/12/2012 ou seja, um ano e três meses após o decurso do prazo prescricional.

  1. Para tanto, produziram as suas alegações, concluindo: “1. A decisão recorrida, que por sua vez confirma a decisão prolatada em primeira instância, não se pronunciou sobre a questão de fundo, procurando eximir a responsabilidade do Estado, com base em argumentos puramente formais, que escapam à essência do Direito, quando este deveria ser entendido como um grau de obtenção de Justiça, em nome do Estado de Direito democrático; além disso, interpretou erradamente e por isso violou a lei substantiva e processual.

  2. Interpretou erradamente o regime aplicável à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, no sentido de que não considerou a possibilidade de inclusão das pessoas coletivas, como não permitiu a aplicação da prescrição sujeita a prazo mais longo por estar em causa um facto ilícito suscetível de constituir crime, violando assim o regime legal contido no artigo 498.º, n.º 3, do CC.

  3. O critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas coletivas reside, no caso dos autos, no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição de subordinada na pessoa coletiva e o cometimento do crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação, pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança, dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respetivos subordinados – sendo que a violação dos deveres de cuidado pode resultar de ação ou de mera inércia do líder, consistindo, por exemplo, na omissão de ordens diante de práticas ilegais dos subordinados, sendo que em qualquer dos casos, a violação dos deveres de cuidado pode ser dolosa ou negligente, pelo que as pessoas coletivas são suscetíveis de responsabilidade criminal, em função de um crime como o que está em causa nestes autos de recurso.

  4. Mas ainda que, por hipótese, assim não se entendesse, a ratio legis do alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do artigo 498.º do CC assenta na especial gravidade do facto que, embora seja o mesmo, tenha gerado diferentes tipos de responsabilidade: a civil e a criminal; pelo que lei estabelece apenas uma única exigência para a aplicação do prazo prescricional mais alargado: saber se a conduta ilícita civil, causa do pedido de indemnizar, é suscetível também de integrar um ilícito penal, não estando dependente do efetivo exercício do procedimento criminal, nem do resultado final desse procedimento ou do tipo de pessoa civilmente demandada (ver o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, prolatado em 22.11.2007 no âmbito do processo n.º 02121/04.1BEPRT, onde se pode ler que “IX. Não obsta à aplicação de prazo de prescrição extraordinário, previsto na lei penal, o facto de os civilmente demandados serem pessoas coletivas, insuscetíveis, em princípio, da censura moral em que assenta o ilícito penal.”).

  5. No caso dos autos os factos em causa são suscetíveis de integrar um crime de homicídio por negligência, previsto e punido no artigo 137.º do CP devendo ser neste caso considerada a negligência grosseira, prevista no seu n.º 2, por conexão com o artigo 15.º, alínea a), do CP, sendo por isso o agente punido com uma pena de prisão até cinco anos, o que faz com que, tendo em conta o artigo 118.º, n.º 1, alínea b), do CP, o procedimento criminal se extinga, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas não exceda dez – em resultado do que antecede os factos em causa nestes autos ocorreram no dia 10.01.2008, pelo que o direito à indemnização só estaria prescrito em 10.01.2018.

  6. Neste sentido, a decisão recorrida também fez uma interpretação e aplicação deficiente dos artigos 15.º, alínea a), 137.º, n.º 2, e 118.º, n.º 1, alínea b), do CP, que violou em matéria de lei substantiva.

  7. Acresce que os recorrentes não só não podiam, como não tinham nada que propor ação cível em separado enquanto o processo-crime não tivesse sido arquivado, por a isso se opor o artigo 72.º do CPP, já que até então existia um constrangimento legal ao exercício do direito de dedução de indemnização, pelo que só se iniciou a contagem do prazo prescricional a partir dessa altura, uma vez que enquanto se mantiver pendente a lide processual penal não ocorre a contagem do prazo prescricional [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.06.1986: “enquanto o processo-crime não estivesse parado por mais de 6 meses, arquivado ou o réu absolvido, não podiam os autores propor a ação cível em separado, por a isso se opor o preceituado no art. 30.º do Cód. Proc. Penal; até aí existia um obstáculo legal ao exercício do direito e, portanto, não se iniciara o prazo para a propositura da ação, como se dispõe no art. 306.º, n.º 1, do Cód. Civil” (STJ, 11.06.1986: BMJ, 358.º-447); acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07.04.1988: “a prescrição do direito de ser indemnizado em virtude de acidente de viação não corre contra menores nem começa a decorrer enquanto estiver pendente processo de natureza criminal, tendente à investigação das circunstâncias do mesmo acidente” (RE, 07.04.1988: BMJ, 376.º-676)].

  8. Pelo que a decisão recorrida também errou ao interpretar o regime definido no artigo 72.º do CPP, tendo assim violado lei processual.

  9. Nos termos do artigo 326.º, n.º 1, do CC, a interrupção da prescrição tem por efeito a inutilização de todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo e que, nos termos do artigo 327.º, n.º 1, do CC, se mantém até ao trânsito em julgado da decisão que pôs termo ao processo (que só ocorreu em 10.05.2010); o processo-crime não terminou com o despacho de arquivamento, mas sim com o trânsito em julgado dessa decisão, sendo que o prazo de prescrição continuou interrompido até esse momento, só voltando a correr a partir de então [acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 07.12.2011 no âmbito do processo n.º 00867/05: “à data do despacho de não pronuncia não só o prazo de prescrição não tinha decorrido como tinha sido inutilizado todo o tempo anterior. Logo é evidente que à data em que foi deduzido por banda dos recorrentes, estava em tempo o pedido de indemnização civil contra o Hospital Distrital de Cascais, que teve a virtualidade de manter a interrupção até ao trânsito em julgado da decisão que pôs termo ao processo (art.º 327.º, n.º 1, do CC)” (…); “o processo-crime não terminou com o despacho de não pronúncia, como parece ter sido entendido na primeira instância. Conforme decorre da matéria de facto, tal processo só findou com o trânsito em julgado do Acórdão do STJ” (…) “o prazo de prescrição continua interrompido até ao trânsito da decisão que ponha termo ao processo criminal (…) é manifesto que no caso sub judice o prazo de prescrição só voltou a correr a partir do trânsito em julgado do acórdão do STJ.”].

  10. Não tem portanto qualquer suporte legal, havendo mesmo clara violação da lei, o entendimento vertido na decisão a quo, de que o prazo prescricional se deve contar a partir do primeiro despacho de arquivamento, proferido em 19.09.2008, uma vez que este não colocou termo ao processo, tendo sido, uma vez mais, violada a lei substantiva, por interpretação abusiva do referido artigo 327.º, n.º 1, do CC.

  11. Em síntese, conclui-se no sentido de que a decisão a quo apenas se preocupou em proteger o Estado, descurando a tutela que os privados reclamam quando estão em causa factos suscetíveis de gerar a responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, sendo culposos e ilícitos e causadores de graves factos lesivos, que exigem a condenação no pagamento da quantia devida, obtida por via da equidade.

  12. A decisão recorrida interpretou de forma censurável e absolutamente deficiente o regime que a lei substantiva e processual consagra no artigo 498.º, n.º 3, do Código Civil, nos artigos 15.º, alínea a), 137.º, n.º 2, e 118.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e no artigo 72.º do Código de Processo Penal.

  13. Mais: se o legislador entendeu dever alargar o prazo prescricional relativo à responsabilidade civil por facto ilícito quando esteja em causa um facto simultaneamente suscetível de constituir crime, a decisão recorrida o que fez foi interpretar o contrário, isto é, de forma restritiva, ofendendo sentido teleológico da lei, que procurou minimizar, com isso violando o competente regime normativo.

  14. Em parte alguma da lei substantiva decorre que tem de existir um processo-crime, que esse processo terá de originar uma decisão positiva, de acusação ou de pronúncia ou de condenação, em qualquer uma das fases processuais penais, ou que esteja excluída a responsabilidade criminal individual e ou coletiva para que haja lugar ao alargamento do prazo prescricional do direito de indemnizar.

  15. Por outro lado em parte alguma a lei obriga a que os sujeitos processuais sejam obrigados a demandar civilmente antes de terminar o tempo da pendência penal, que deve ser considerado até ao trânsito em julgado da última decisão (10.05.2010 no caso), para que seja iniciado, ou reiniciado, o prazo de prescrição antes interrompido; o que leva a ter inexoravelmente de concluir que não há qualquer fator temporal...

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