Acórdão nº 927/20.3KRPRT.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 02 de Fevereiro de 2022
Magistrado Responsável | MARIA DEOLINDA DIONÍSIO |
Data da Resolução | 02 de Fevereiro de 2022 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
RECURSO PENAL n.º 927/20.3KRPRT.P1 2ª Secção Criminal Conferência/Urgente [Violência Doméstica] Relatora: Maria Deolinda Dionísio Adjunto: Jorge Langweg Comarca: … Tribunal: …/Juízo Local Criminal-J… Processo: Comum Singular n.º 927/20… ***Assistente/Demandante: AA… Arguido: BB… Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO
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Por sentença proferida e devidamente depositada a 12 de Julho de 2021, no âmbito do processo supra referenciado, o arguido BB…, filho de CC… e de DD…, natural da freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, nascido a .. de … de 1963, divorciado, operário da construção civil, residente na Rua…, n.º …., …, Vila Nova de Gaia e titular do Cartão de Cidadão n.º ……. . ZY., foi absolvido da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º, n.ºs 1, al. b) [e não alínea a) como, por manifesto lapso de escrita evidenciado do demais teor decisório, consta do dispositivo e por esta via se rectifica ao abrigo do disposto no art. 380º, n.ºs 1, al. b) e 2), do Cód. Proc. Penal], 2 [al. a)], 4 e 5, do Cód. Penal, e bem assim do pedido de indemnização civil que contra ele formulava a assistente AA…, com os demais sinais dos autos.
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Inconformada, a assistente AA… interpôs recurso terminando a sua motivação com as seguintes conclusões[1]: (transcrição sem destaques/sublinhados) A. Decidiu o Tribunal a quo pela absolvição do Arguido relativamente ao crime de violência doméstica de que vinha acusado pelo Ministério Público porque, alegadamente, “não se provou que o Arguido tivesse agredido, física ou psicologicamente, a Assistente. Não se provou que a tivesse ameaçado ou amedrontado. Nem se provou que a tivesse agredido sexualmente (...) afigura-se-nos evidente que tais factos não revelam a gravidade, o desprezo, a humilhação e a especial desconsideração pela vítima, nem implicam um quadro de degradação da dignidade da Assistente incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. Esta factualidade não é suficiente para que possamos concluir que o comportamento do Arguido assentava numa posição de domínio e controlo sobre a Assistente.”; B. Entende a Recorrente que procedeu erradamente o Tribunal a quo, uma vez que, em sede de julgamento, se provou que o Arguido beliscou a Assistente, calcou-lhe o seio esquerdo, provocando-lhe dores e um hematoma, puxou-lhe violentamente os cabelos, colocou os seus joelhos sobre a garganta da Assistente, que, no decurso de uma relação sexual, a virou ao contrário, com força, magoando-a na cabeça e tentando penetrá-la de costas, não o conseguindo de forma pretendida, que a tornou a virar sem lhe largar o cabelo, o que a deixou nauseada, tendo desfalecido momentaneamente e ficando de cama por cinco dias (cfr. segmento “Factos Provados” da Douta Sentença, designadamente pontos 3, 4, 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14); C. Deu-se, igualmente, como assente que o Arguido apelidou a Assistente de “burrinha” (ponto 19 dos Factos Provados) e que a ameaçou “AA…, tu não me conheces. Tu não sabes quem eu sou. Nunca ninguém falou assim para mim” (ponto 18 dos Factos Provados).
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Por fim, provou-se que o Arguido telefonou, pelo menos uma vez, para o Jardineiro da Quinta da Assistente, perguntando-lhe se a Assistente se encontrava lá e o que estava a fazer (ponto 20 dos Factos Provados).
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Ora, dos segmento dos factos dados como provados, é possível ilidir que o Arguido mantinha uma relação de domínio com a Assistente, que a subjugava e desvalorizava, que aspirou controlar toda a sua vida e que, pelo menos em sete ocasiões ocorridas na constância da relação amorosa, a agrediu fisicamente, deixando-lhe marcas notórias e a levou a praticar atos sexuais, nos quais a Assistente nunca consentiu.
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As condutas descritas assumem um caráter especialmente desvalioso e particularmente censurável por atingirem a dignidade pessoal da Assistente, uma mulher já com 65 anos e que procurava refazer a sua vida amorosa.
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Mais: a reiteração das condutas durante todo o relacionamento amoroso é reveladora da sua especial gravidade e da indiferença do Arguido relativamente aos bens jurídicos protegidos pelo art. 152º do Código Penal: a vida, a saúde, a integridade e a dignidade da pessoa humana.
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O texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum revela o erro notório na apreciação da prova, uma vez que o homem médio, perante o teor da decisão recorrida, facilmente se dá conta que o Tribunal a quo violou as regras da experiência e que efetuou um juízo incorreto, desadequado e ilógico, extraindo ilação contrária ao que se impunha.
I. Assim, a ponderação dos factos dados como provados em 3, 4, 5, 6, 9, 11, 12, 13, 14, 16, 18, 19, 20 impunha que se concluísse pela verificação dos elementos objetivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica.
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Ressalvando, a este respeito, que não basta que no decurso de uma relação sexual ambos os intervenientes dêm o seu consentimento. É preciso que cada um deles consinta em cada ato que compõe a relação sexual, o que não aconteceu no caso sub iudice, dado que resulta das declarações da Assistente que esta pediu ao Arguido que parasse, dizendo que não queria praticar sexo oral, sexo anal e masturbação, K. Sendo que, é a própria sentença recorrida que, neste âmbito, afirma “no que diz respeito à alegada falta de consentimento em prosseguir com as práticas sexuais em causa, a Assistente limitou-se a verbalizar que as mesmas ocorreram contra a sua vontade” – como se isto não fosse bastante...
L. Pese embora a sentença a quo tenha dado como não provados os seguintes factos, as declarações da Assistente e os testemunhos de EE… e FF… impunham distinta classificação, designadamente, que se provasse estes três factos essenciais: (i) que, quando coagida a praticar sexo oral, sexo anal ou masturbação, a Assistente insistia com o Arguido para que parasse, pois não o queria fazer (cfr. gravação com a refª refª 20210604144558_15925423_2871625, minutos 05:05 a 07:11), (ii) que o Arguido injuriava a Assistente apelidando-a de “vaca”, “vaca de merda”, “estupor” e “filha da puta” (cfr. gravação com a refª 20210604144558_15925423_2871625, minutos 28:30 a 34:10, 55:14 a 55:33 e 01:03:25 a 01:03:38, gravação com a refª 20210514120507_15925423_2871625, minutos 00:04:36 a 00:04:48 e gravação com a refª 2021064165626_15925423_287 1625, minutos 00:05:12 a 00:05:25, minutos 00:05:56 a 00:00:60, minutos 00:10:40 a 00:11:57) e, (iii) que, aquando do episódio provado nos factos 10 a 14, a Assistente ficou sem respirar quando o Arguido lhe pôs os joelhos no pescoço (cfr. gravação com a refª 20210604144558_15925423_2871625, minutos 01:05:00 a 01:10:59).
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Visando o bem jurídico tutelado pelo ilícito criminal em causa a dignidade da pessoa humana e a defesa da sua integridade pessoal – física e psicológica – no âmbito de uma particular relação interpessoal, é de enquadrar as injúrias, as ameaças e as agressões físicas aquando do envolvimento sexual como reveladoras do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º do Código Penal.
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O crime de violência doméstica, como descrito no citado art. 152º do Código Penal, exige que alguém inflinja sobre outrem maus tratos físicos e psíquicos, incluindo ofensas sexuais, seja de modo reiterado ou não. Nos termos da al. b) do n.º1 do art. 152º do Código Penal, o crime é perpetrado contra pessoa com a qual o agente mantenha uma relação de namoro.
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Integram o conceito de maus tratos físicos: a violência e a coação empregues em todos os atos sexuais, os puxões de cabelos, os beliscões, o calcar-lhe o seio, o pôr-lhe os joelhos sobre a garganta, coagindo-a a praticar sexo oral e deixando-a sem respirar.
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Integram o conceito de maus tratos psicológicos: os insultos dirigidos à Recorrente de “burrinha”, “vaca”, “vaca de merda”, “estupor”, “filha da puta”, acompanhads das ameaçadas “Tu não sabes quem eu sou” e do controlo recorrente que o Arguido levava a cabo relativamente à vida da Assistente, demonstrado pelo facto de contactar os colaboradores desta, a fim de saber onde ela estava e o que fazia – conforme se deu como provado.
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Por tudo quanto se expôs, fez o Tribunal a quo incorreta interpretação do disposto no art. 152º do Código Penal por desconsiderar os factos que o próprio Tribunal deu como assentes, referindo, para espanto geral, que as condutas do Arguido não revelam a gravidade, o desprezo, a humilhação e a especial desconsideração pela vítima. Sucede que o já referido art. 152º do Código Penal, não faz disso depender a verificação do ilícito mas apenas da verificação dos elementos objetivos e subjetivos que supra já se demonstraram. De mais a mais, não pode o Tribunal a quo substituir-se à vítima e decidir, por si, como é que esta se sente e se as condutas perpetradas pelo Arguido são (ou não) suscetíveis de criar na Assistente a humilhação, a falta de auto estima, a tristeza e a angústia que sentiu e que relatou já em sede de julgamento.
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Nos termos e para os efeitos das als. a), b), c) do n.º 2 do art. 412º do CPP, violou, assim, o Tribunal a quo o disposto no art. 152º do Código Penal, que deveria ter sido entendido no sentido de que basta a verificação de maus tratos físicos e psíquicos por parte de alguém com quem se mantém relacionamento amoroso, para que esteja verificado o ilícito criminal, não assumindo relevância – porque o art. 152º do Código Penal não lha confere – o estado emocional da vítima que os sofreu.
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A sentença recorrida padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão de absolvição – artigo 410º nº 2 alínea b) do Código de Processo Penal - uma vez que os factos provados na vertente de ofensas verbais/ psicológicas e físicas e sua motivação, bem como a demais prova, impunham uma decisão no sentido de condenação do arguido; T. Padece igualmente de erro notório de apreciação da prova – artigo 410º nº 2 alínea c) do Código Processo Penal- uma vez que aos olhos de um homem médio a...
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