Acórdão nº 151/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Fevereiro de 2022
Magistrado Responsável | Cons. Joana Fernandes Costa |
Data da Resolução | 17 de Fevereiro de 2022 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO Nº 151/2022
Processo n.º 216/2020
3ª Secção
Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e B., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (em seguida, «LTC»), do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 13 de fevereiro de 2020, que recusou a aplicação do «art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009, ao permitir que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida», com fundamento na violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
2. Em consequência de acidente de trabalho que vitimou o aqui recorrido, foi instaurado o competente processo no Juízo do Trabalho de Beja, no âmbito do qual foi obtido acordo parcial entre as partes, com reconhecimento do evento como acidente de trabalho, do nexo causal entre o acidente e as lesões sofridas pelo sinistrado, originadoras de uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 80%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) desde a alta clínica, ocorrida em 05.12.2016, bem como do valor da retribuição auferida pelo mesmo.
Tendo os autos prosseguido para a fase contenciosa, foi proferida sentença que condenou a seguradora demandada: (i) no pagamento de da quantia de € 17.715,54, a título de reparação pela aquisição de viatura adaptada às necessidades do sinistrado; (ii) do pagamento de uma prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, no valor mensal, à data da alta clínica, de € 230,57, a pagar 14 vezes ao ano, com atualizações devidas desde 01.01.2017; e (iii) a manter avaliações médicas e/ou assistência regulares ao sinistrado, suportando as despesas com as mesmas e com a medicação.
Inconformada, a seguradora interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora, tendo o sinistrado, ora recorrido, interposto recurso subordinado.
Por acórdão proferido em 13 de fevereiro de 2020, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso interposto pela seguradora e concedeu parcial provimento ao recurso subordinado, fixando a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa no valor mensal, em 05.12.2016, de € 265,00, atualizado desde 01.01.2017 de acordo com as alterações do valor da retribuição mínima mensal garantida e a pagar 14 vezes ao ano, acrescendo os juros pelo modo fixado na sentença.
3. No segmento que aqui releva, lê-se no acórdão recorrido o seguinte:
«[…]
Do valor da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa
Argumenta o sinistrado, no recurso subordinado que interpôs, que estando demonstrado que necessita dos cuidados de terceira pessoa, em 4 horas diárias, o valor mensal fixado a título de prestação suplementar para assistência a terceira pessoa (€ 230,57 x 14, com referência à data da alta definitiva, ocorrida em 05.12.2016, com atualizações devidas desde 01.01.2017) não lhe permite suportar o vencimento de um(a) empregado(a) doméstico(a), à razão de 4 horas por dia.
Mais argumenta que o limite máximo de 1,1 IAS fixado no art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009 é inconstitucional, por violação do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, contido no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição.
Vejamos.
No art. 19.º n.º 1 da anterior Lei de Acidentes de Trabalho (Lei 100/97, de 13 de Setembro), estipulava-se que a prestação suplementar para assistência de terceira pessoa tinha um valor mensal “não superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico.” No atual regime, esse limite máximo foi fixado em 1,1 IAS – art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009.
O indexante dos apoios sociais (IAS) foi criado pela Lei 53-B/2006, de 29 de Dezembro, como “referencial determinante da fixação, cálculo e atualização dos apoios e outras despesas e das receitas da administração central do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, qualquer que seja a sua natureza, previstos em atos legislativos ou regulamentares” – art. 2.º n.º 1 deste diploma.
Serve, pois, de base ao cálculo das prestações sociais da Segurança Social, mas também é utilizado para o cálculo de receitas do Estado, como deduções no IRS[5], mínimo de existência – que o art. 70.º n.º 1 do Código do IRS afirma equivaler à disponibilidade de um rendimento líquido de imposto de 1,5 x 14 x IAS – ou ainda de base de incidência das contribuições à Segurança Social[6].
É também utilizado como base de cálculo da isenção no pagamento de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde, concedido a utentes em situação de insuficiência económica, que o art. 6.º n.º 1 do DL 113/2011, de 29 de Novembro, considera aqueles que integram “agregado familiar cujo rendimento médio mensal seja igual ou inferior a 1,5 vezes o valor do IAS.”
Importa recordar que o indexante dos apoios sociais (IAS) estava fixado para o ano de 2009 em € 419,22, e que a sua atualização esteve suspensa[7] até 2016; em 2017 foi atualizado para € 421,32, em 2018 para € 428,90, em 2019 para € 435,76 e em 2020 para € 438,81.[8] Consequentemente, o limite máximo estabelecido no mencionado art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009 manteve-se em € 461,14 entre 2009 e 2016, subiu para € 463,46 em 2017, para € 471,79 em 2018, para € 479,34 em 2019, encontrando-se fixado em € 482,69 para o ano de 2020.
Por seu turno, a retribuição mínima mensal garantida sofreu outra evolução: em 2009 estava fixada em € 450,00; em 2010 subiu para € 475,00; entre 01.01.2011 e 30.09.2014 manteve-se em € 485,00; entre 01.10.2014 e 31.12.2015 subiu para € 505,00; em 2016 para € 530,00; em 2017 para € 557,00; em 2018 para € 580,00; em 2019 para € 600,00; e no ano de 2020 está fixada em € 635,00.[9]
Comparando a evolução do limite máximo estabelecido para a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa com a evolução da retribuição mínima mensal garantida, verifica-se que aquela apenas foi ligeiramente superior no ano de 2009, passando a situar-se em valor inferior logo em 01.01.2010, com a diferença a acentuar-se nos anos seguintes, sendo no ano de 2020 a diferença entre os dois valores já de € 152,31.
Significa isto que um sinistrado – afetado de graves sequelas que o impedem de, por si só, prover à satisfação das suas necessidades básicas diárias, envolvendo os atos relativos a cuidados de higiene pessoal, alimentação e locomoção (art. 53.º n.ºs 2 e 5 da Lei 98/2009) – e a quem é reconhecido, porque dela carece, o direito a uma prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, acaba por receber um valor que, objetivamente, não lhe permite contratar um trabalhador que lhe preste tal assistência.
Para além da indignidade de se atribuir um valor para assistência a terceira pessoa que não permite contratar quem a preste, coloca-se o sinistrado, nestas situações normalmente já gravemente afetado na sua saúde física e psíquica e com muito acentuada perda da sua capacidade de ganho, numa situação de maior desfavor, sendo obrigado a alocar parte de outras indemnizações ou pensões, a que tem direito para outros fins, ao pagamento da retribuição devida ao terceiro que lhe vai prestar a necessária assistência.
Ademais, o valor máximo estabelecido no art. 54.º n.º 1 da Lei 8/2009 mostra-se inferior a patamares que a legislação reconhece, para outros fins, como mínimo de existência ou situação de insuficiência económica, como sucede para fins de IRS ou para isenção de taxas moderadoras no SNS – 1,5 o valor do IAS – colocando assim os sinistrados em acidente de trabalho que necessitam de assistência a terceira pessoa em situação de clara desvantagem económica na contratação de trabalhador que lhes preste tal benefício.
Conclui-se, pois, que o art. 54.º n.º 1 da Lei 98/2009, ao permitir que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, assim colocando o sinistrado em acidente de trabalho em situação de desvantagem económica e impedindo-o de beneficiar dessa assistência, é inconstitucional, por violação do direito à assistência e justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, estatuído no art. 59.º n.º 1 al. f) da Constituição.
Recusando-se, pois, a aplicação da mencionada norma, com fundamento em inconstitucionalidade, tomando como base de cálculo o valor da retribuição mínima mensal garantida à data da alta – tal como era a solução do art. 19.º n.º 1 da Lei 100/97 – e ponderando, ainda, que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa deve ser fixada em função do tempo necessário a essa assistência e paga durante 14 vezes por ano[10], deverá esta prestação fixar-se, à data da alta (05.12.2016) em € 530,00 x 4/8 = € 265,00, paga 14 vezes por ano, e atualizada conforme a evolução da retribuição mínima mensal garantida.»
4. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, requerendo a apreciação da «norma constante no 54.º n.º 1 da Lei nº 98/2009 […] quando interpretada no sentido de que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, «colocando o sinistrado em acidente de trabalho em situação de desvantagem económica e impedindo-o de beneficiar dessa assistência»».
5. Pronunciando-se pela procedência do recurso, o recorrente alegou nos seguintes termos:
«1. Da interposição do recurso obrigatório de constitucionalidade por parte do Ministério Público
Vem o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, interposto pelo Ministério Público no Tribunal da Relação de Évora, do Acórdão proferido pela Secção Social deste Tribunal, em 13 de fevereiro de 2020...
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Acórdão nº 342/13.5TTTMR.1.E1.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 14 de Setembro de 2023
...de uma incapacidade e é reparado apenas com base na retribuição que auferia há muitos anos atrás.» Escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 151/2022, confirmando, de resto, juízo de inconstitucionalidade que havíamos formulado nesta Relação de Évora, a propósito do art. 54.º n.......
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Acórdão nº 342/13.5TTTMR.1.E1.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 14 de Setembro de 2023
...de uma incapacidade e é reparado apenas com base na retribuição que auferia há muitos anos atrás.» Escreveu-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 151/2022, confirmando, de resto, juízo de inconstitucionalidade que havíamos formulado nesta Relação de Évora, a propósito do art. 54.º n.......