Acórdão nº 821/18.8T9PTG.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 08 de Fevereiro de 2022

Magistrado ResponsávelJO
Data da Resolução08 de Fevereiro de 2022
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 821/18.8T9PTG, do Juízo Local Criminal de Portalegre, e mediante pertinente sentença, a Exmª Juíza decidiu nos seguintes termos: “- Condeno o arguido SC pela prática, em autoria material, de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, previsto e punido pelo artigo 150º, nº 2, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão; - Suspendo a execução da pena de prisão aplicada ao arguido SC pelo período de 1 (um) ano, nos termos do artigo 50º, nºs 1 e 5, do Código Penal, subordinada ao dever de o arguido entregar, e comprovar nos autos, uma contribuição monetária no montante de 1.500,00 € (mil e quinhentos euros) ao …, no prazo de 1 (um) ano (artigos 50º, nº 2, e 51º, nº 1, alínea c), do Código Penal). A entrega de tal contribuição deve conter a menção de que se trata do cumprimento de uma sanção penal e não de um donativo, não podendo em caso algum ser declarada para efeito de benefícios fiscais ou de qualquer outra natureza

- Condeno o arguido nas custas criminais, nos termos dos artigos 513º, nº 1, e 524º, nº 1, do CPP, fixando-se em 4 (quatro) UC o valor da taxa de justiça (artigo 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo regulamento)”

* Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, formulando na respetiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões: “A. A Decisão recorrida, e que anima o presente Recurso, encontra-se ferida de nulidade, por grande parte dos depoimentos, prestados pelas testemunhas e gravados em Audiência de Julgamento, se revelarem impercetíveis, decorrente de uma deficiente gravação

B. Esta incidente mais relevância assume quando grande parte da impercetibilidade dos depoimentos incide sobre os que foram prestados por médicos, uma vez que o presente processo comporta, necessariamente, a análise de questões de ordem técnica, dotada de razão de ciência específica

C. A deficiência detetada é equiparável à ausência de registo da prova, o que gera nulidade, o que se argui, nos termos estatuídos nos artigos 363º e 364º do CPP, em leitura conjugada

D. Um registo cujo conteúdo não se consegue apreender vale tanto como nenhum registo

E. Não obstante, o Tribunal a quo, cotejando a prova testemunhal produzida, conjugada com o acervo documental inserto nos Autos, enveredou por um ostensivo erro de julgamento, encontrando-se na sua génese um erro notório na apreciação da prova

F. O alegado erro tem a virtualidade de inquinar, consequentemente, as conclusões e efeitos jurídicos, em sede de subsunção do direito aos factos, que resultam refletidos na Sentença ora impugnada

G. Os factos considerados provados sob os números 6, 12, 27, 28, 29 e 30 não encontram sustentação probatória, quer documental, quer por via dos depoimentos das testemunhas que, em Audiência de julgamento, foram inquiridas, considerando a “possível” transcrição dos seus depoimentos

H. Neste contexto, a matéria aí vertida deverá ser reapreciada, considerando o acervo probatório existente nos Autos, modificando-se o seu sentido e migrando-se para a “Matéria de facto não provada”

I. Não ficou demonstrado e inexistem registos clínicos de que a assistente, no momento da observação pelo Recorrente, tinha vómitos e sentia-se sonolenta (facto provado 6)

J. De igual sorte, no momento da sua observação clínica pelo Recorrente, não manifestou agitação, com sensações de desmaio e sonolência, a vomitar e com dores de cabeça (facto provado 12)

K. Ficou por demonstrar que, no momento da observação clínica pelo Recorrente, a assistente, considerando os sinais e sintomas que evidenciava, tinha um diagnóstico mais provável de “fratura do rochedo” (facto provado 27)

L. Não se demonstrou cabalmente que a situação clínica da assistente, no momento da observação clínica pelo Recorrente, tinha um contexto clínico que impunha, necessariamente e em cumprimento com as leges artis, a realização de uma TAC, CE, essencial para confirmar ou infirmar aquele diagnóstico, sendo tal circunstancialismo do efetivo conhecimento do Recorrente (facto provado 28)

M. Atento o contexto clínico da assistente, a atuação clínica do Recorrente e do seu colega da área hospitalar, médico cirurgião geral, Dr. GF, conjugado com o enquadramento jurídico e regulamentar que norteia a atuação médica, o Recorrente não agiu de modo dissonante com as leges artis

N. E muito menos com culpa, em qualquer das suas modalidades

O. Aliás, foi, indubitavelmente, a pronta intervenção do Recorrente que se revelou como garante da manutenção da assistente sob o foro de proteção e intervenção hospitalar, não lhe dando alta médica para ambulatório, como sugerido pela especialidade de cirurgia geral

P. A sua atuação médica, considerando a sua área de intervenção - … -, a sua especialidade, o respetivo conteúdo funcional, revelou-se, no plano técnico, deontológico e legal, insuscetível de oferecer o flanco à crítica, falecendo, consequentemente, a conclusão plasmada nos factos provados sob os números 29 e 30

Q. Assim, no que concerne à intervenção clínica do Recorrente e do seu colega cirurgião geral GF, releva os denominados Princípio da Confiança e Princípio da Divisão do Trabalho

R. De igual modo, convoca-se a aplicabilidade nos presentes Autos do Princípio geral do direito sancionatório “in dubio pro reo”

S. A ostensiva indefinição e até contradição de perspetivas no que concerne à atuação clínica do Recorrente, no contexto da observação médica de que beneficiou a assistente, com a intervenção do médico especialista de cirurgia geral, Dr. GF assim o dita

T. Considerando a conduta delituosa imputada ao Arguido e a norma típica que a prevê, in casu, o artigo 150º, nº 2, do CP, sob a epígrafe Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, resulta inverificado o pressuposto necessário para a incriminação do Recorrente, traduzido na sua atuação clínica com violação das leges artis (tipo objetivo)

U. Assim como resulta da prova produzida a impossibilidade de poder imputar objetivamente ao Recorrente a circunstância de ter criado, com a sua atuação médica, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou saúde da assistente, em consequência da alegada violação das regras da sua arte médica (tipo subjetivo)

V. O juízo formulado da sua alegada atuação dolosa, a título de dolo eventual, resulta ostensivamente despropositado e sem qualquer base probatória

W. E assim é, porquanto, considerando a atuação do Recorrente, mormente a minuciosidade com que observou a assistente, indiciada nos registos que efetuou e, ainda, nas iniciativas que protagonizou de a submeter a observações clínicas por especialidades diversas, mantendo-a sempre sob a égide da proteção do meio hospitalar, não se coaduna com uma atitude displicente e com aquele juízo de culpa

X. No caso sub judice ficou por demonstrar o preenchimento dos elementos do tipo, Y. In casu, a existência de uma atuação clínica protagonizada pelo Recorrente, dissonante com as leges artis e, consequentemente, geradora de um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde da assistente

Z. Neste exato contexto, não sendo possível imputar objetivamente o resultado ao Recorrente, fatalmente a sua absolvição impõe-se, por falência objetiva dos pressupostos legalmente consagrados que poderiam determinar a sua condenação

Do Pedido: Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, sempre do mui douto suprimento desse Venerando Tribunal Superior, requer-se:

  1. O reconhecimento da nulidade arguida da gravação da prova, por impercetibilidade de parte dos depoimentos prestados pelas testemunhas, o que gera a impossibilidade da sua compreensão e consequente aferição do respetivo conteúdo; b) Caso assim não se entenda, requer-se a revogação da decisão recorrida, sendo substituída por Acórdão absolutório, atentos os fundamentos plasmados no âmbito do presente Recurso que habilitam e sustentam a pretendida decisão”

    * A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento e concluindo a sua resposta nos seguintes termos (em transcrição): “1. Apresentou o arguido, em 24 de setembro de 2021, recurso da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, na qual invoca, para além do mais, a nulidade prevista no artigo 363º do Código de Processo Penal quanto à gravação do julgamento, que obteve em 03 de setembro de 2021

    1. Face ao teor do artigo 363º do Código de Processo Penal e ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 03 de julho de 2014, no processo nº 419/11.1TAFAF.G1-A.S1, a invocada nulidade, a existir, o que não concedemos, deveria ter sido invocada junto do Tribunal “a quo”, em requerimento autónomo, e é extemporânea, porque não foi invocada nos 10 dias seguintes à tomada de conhecimento das referidas gravações, devendo por isso considerar-se sanada

    2. Por outro lado, caso assim não se entenda, a gravação em causa, ainda que não se mostre perfeita, em nada limitou os direitos de defesa do arguido, nos termos do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que lhe permitiu transcrever, nas suas alegações, as declarações das testemunhas ouvidas, bem como escrutinar minuciosamente toda a prova produzida e a matéria de facto dada por provada, apresentando a sua defesa face à mesma

    3. Deve, pois, a invocada nulidade ser julgada improcedente, pelos fundamentos expostos

    4. A decisão recorrida mostra-se devidamente fundamentada, de modo escorreito, congruente e lógico, tendo a prova sido avaliada, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova no processo penal, de acordo com as regras da experiência e livre convicção do julgamento

    5. Mais: a prova produzida colocou o Tribunal a quo numa posição de certeza quanto aos factos decisivos para a sentença...

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