Acórdão nº 1084/12.4TBPTL.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 20 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução20 de Janeiro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA instaurou contra BB uma acção na qual pediu que se declarasse “que o autor não é devedor de qualquer quantia à ré a título de tornas da partilha de bens comuns do casal”.

Para o efeito, e em síntese, alegou terem contraído casamento em 21 de Fevereiro de 1992, sem convenção antenupcial, casamento esse que veio a ser dissolvido por divórcio em 4 de Janeiro de 2008; que decidiram “não proceder à imediata partilha dos bens do casal”; que, em 28 de Fevereiro de 2011, celebraram, por documento particular, um “contrato-promessa de partilha de bens comuns”, do qual constava, segundo alega, “que o aqui A prometeu pagar a si mesmo a quantia de € 1 400 000,00 de tornas – cláusula terceira, alínea a)”, “assim como prometeu pagar à aqui Ré um milhão e quatrocentos mil euros a título de tornas, cláusula terceira, alínea b)”, a pagar quando “as dívidas das sociedades cujas quotas à Ré foram adjudicadas, às sociedades cujas quotas ao aqui Autor, também adjudicadas foram, estivessem integralmente pagas”; que, no entanto, não se percebe a razão deste pagamento à ré, porque foi o seu quinhão que ”foi preenchido por defeito e este teria direito a receber € 195.057,52 da ré BB”; que, em 7 de Abril seguinte, celebraram o contrato de partilha, por escritura pública na qual, por entre o mais, ambos declararam que “Feita a compensação entre o activo e o passivo não há lugar ao pagamento de tornas”; que, no entanto, “a ré entende que é credora de tornas no valor de 1.400.000,00 € sobre o autor”, o que além do mais constitui abuso de direito; mas que “nunca tal repartição de activos e passivos do património comum (onde a R a mais do que já levou teria direito a € 1 400 000,00), seria permitida face ao disposto de forma imperativa pelo art. 1730 do Código Civil”.

A ré contestou, concluindo que devia ser absolvida do pedido, e deduzindo reconvenção, na qual pediu (a) que a escritura de partilha fosse declarada “um documento falso, no que se refere ao valor atribuído aos bens e na parte em que se declara que «Feita a compensação entre o activo e o passivo, não há lugar ao pagamento de tornas»”, declaração que ficou na escritura a pedido do autor; (b) que se declarasse “que assiste à ré o direito a receber do autor, a título de tornas, a quantia de € 1 400 000,00” (c) que o autor fosse condenado a pagar-lhe “a quantia de € 1 400 000,00, a título de tornas devidas por efeito da partilha dos bens comuns do casal, acrescida de juros moratórios, contados sobre o capital em dívida à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento” e, subsidiariamente, a mesma condenação, por enriquecimento sem causa.

O autor replicou. Sustentou a inadmissibilidade da reconvenção, respondeu e pediu, “caso a acção improceda e por mera cautela”, que se declarasse “que nos termos da cláusula 4.ª do contrato promessa de partilha (…) só está obrigado a pagar 1 400 000,00 a título de tornas à ré, depois de que as sociedades comerciais A..., Lda. e I..., Lda., paguem às sociedades D..., Lda. e Im..., Lda., a quantia de € 1 400 000,00” e que “não são devidos quaisquer montantes a título de juros pelo A à R".

A ré treplicou, respondendo às excepções opostas à reconvenção.

No saneador, a fls. 358, por entre o mais, foram admitidas a reconvenção e a ampliação do pedido, constante da réplica. Foram ainda definidos o objecto do litígio (“Aferir se o Autor é ou não devedor de quantias junto da Ré, a título de tornas, mormente dos ajuizados 1 400 000,00 €; e, na perspetiva positiva da afirmação do direito da Ré, saber se a mesma é ou não exigível, em virtude dos termos da cláusula 4 do contrato de promessa de partilha dos bens comuns junto aos autos a fls. 30 e segs.”) e os temas da prova (“Considerando que por prova documental e atentas as posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados, se mostra assente que as partes outorgaram contrato de promessa para partilha de bens comuns patenteado a fls. 30 e ss, bem como a adenda ao contrato de promessa de partilha de bens comuns patenteada a fls. 41 e ss, bem como ainda a escritura pública de partilha patenteada a fls. 45 e ss, cumpre aferir entre o mais, da real e concreta vontade das partes na celebração do contrato de partilha atrás referido, mormente se as partes acordaram entre si em excluir dos termos finais de tal contrato o pagamento de tornas convencionado no contrato promessa de partilha atrás igualmente referido, sem mais, sem reservas, por acordo e aceitação de ambas as partes, ou, tendo acordado entre si que tal pagamento continuava a ser devido, por mero pedido expresso do Autor, simplesmente acordaram em não o incluir nos termos da escritura de partilha, com o fito de, entre o mais, iludir obrigações fiscais. Aferir do concreto e real valor dos lotes que compõem cada um dos quinhões segundo os quais as partes acordaram proceder à partilha”.

Pela sentença de fls. 1196 a acção foi julgada procedente, “declarando-se que o autor não é devedor de qualquer quantia à ré a título de tornas da partilha de bens comuns do casal”.

A reconvenção foi julgada improcedente, sendo o autor absolvido dos correspondentes pedidos. Foram ainda declarados nulos o contrato-promessa de partilha e a partilha posteriormente feita por escritura pública, por infracção da regra de que “Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido contrário” (n.º 1 do artigo 1730.º do Código Civil) e consideradas prejudicadas as demais questões.

Quanto ao contrato-promessa, entendeu-se na sentença que “(…) dos factos provados e não provados e respectiva prova e motivação, resulta à evidência que no referido contrato-promessa, ao fixar-se a título de tornas a quantia de €1.400.000,00, sendo delas devedor o A. e credora a Ré, se atribuem às outorgantes prestações manifestamente desproporcionais (cf. 1.6. dos factos provados), pelo que se impõe declarar nulo tal contrato-promessa, nos termos do artigo 1730º, nº 1 CC e teor da jurisprudência supra citada.” Relativamente ao pedido da ré de que a escritura de partilha fosse considerado «um documento falso, no que se refere ao valor atribuído aos bens e na parte em que se declara que “Feita a compensação entre o activoe o passivo, não há lugar ao pagamento de tornas”», a sentença observou que a questão colocada pela ré não se reconduz a um problema de falsidade do documento, mas de “simulação das declarações emitidas pelos declarantes”; e que não se provaram os requisitos da simulação. No que respeita à invalidade por infracção da regra constante do citado artigo 1730.º do Código Civil pelo contrato de partilha, a sentença esclareceu que se impunha “ a declaração da nulidade total da partilha”, não sendo viável a aplicação do “princípio da conservação dos negócios jurídicos”, porque “resulta que a Ré pretende ser credora de tornas, quando se apurou ser devedora das mesmas, tendo em conta o valor das verbas que integram o património activo e passivo a partilhar”.

  1. A ré recorreu para o Tribunal da Relação ..., que concedeu provimento à apelação, alterando diversos pontos da decisão sobre a matéria de facto e julgando improcedente a acção e procedente a reconvenção, decidindo desta forma: «a) Declara-se que o exarado na escritura de partilha, celebrada no dia 7 de Abril de dois mil e onze, no Cartório Notarial sito na Alameda ..., na cidade de ..., perante o Notário CC, que constitui o doc. n.º 5, junto com a P.I.., é falso, no que se refere às declarações dos outorgantes quanto ao valor atribuído aos bens, pois que o que as partes pretendiam realmente declarar era que o valor das quotas sociais, aí descritas sob as verbas 22, 23, 26 e 27, excedia em €1.400.000 o valor declarado.

    1. Consequentemente não corresponde à verdade o que nela se exarou, na parte em que se refere: “Feita a compensação entre o activo e o passivo, não há lugar ao pagamento de tornas”, pois havia lugar a tornas nesse montante de €1.400.000, a pagar pelo primeiro outorgante à segunda outorgante.

    2. Condena-se o autor/reconvindo a pagar à ré/reconvinte a quantia de €1.400.000,00, a título de tornas devidas por efeito da partilha dos bens comuns do extinto casal, acrescida de juros moratórios, à taxa de 4% ao ano, desde a citação (notificação da reconvenção) e até integral pagamento.» Na sequência de alterações significativas da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal da Relação ... considerou, no essencial, que, nem o contrato-promessa de partilha, nem a partilha que se lhe seguiu infringiam a já referida “regra da metade”, constante do n.º 1 do artigo 1730.º do Código Civil: “(…) a contemplação, no contrato promessa, do valor das tornas (€1.400.000) era essencial à justa composição das meações, não se mostrando violada a regra da metade consagrada no art.º 1730º, n.º 1, do C. Civil, pois tal contrato deverá ser interpretado no sentido de que o lote de bens que seria adjudicado à ré tinha um valor inferior ao do que seria adjudicado ao autor e nesse exacto valor.

    Essa cláusula só não foi transposta para o contrato prometido, porque o réu assim o solicitou, invocando motivos fiscais e a ré, de boa fé, assessorada pela respectiva advogada, confiou em que o autor manteria o acordado. (…).

    O contrato de partilha deve conservar-se, sendo interpretado e integrado nos termos do art.º 239.º do CC (…).

    Consequentemente, provada a falsidade das declarações prestadas perante o notário no que tange aos valores que as partes atribuíram aos bens que integrariam as respectivas meações, mais concretamente ao valor das supra referidas quotas sociais e a consequente falsidade da constatação, nela exarada, de que não havia lugar a tornas, o contrato, relativamente a estes pontos, agora omissos, terá de ser integrado de acordo com a vontade real das partes ou de acordo com os ditames da boa fé, quando estes imponham solução diversa.

    A vontade real das partes, que presidiu à celebração do...

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