Acórdão nº 100/22 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Fevereiro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução03 de Fevereiro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 100/2022

Processo n.º 995/21

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I. Relatório

1. A. propôs Impugnação Judicial junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (Unidade Orgânica 1) do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) no valor de € 94.594,53 (acrescida de juros compensatórios de € 4.828,03) referente ao ano de 2011, com fundamento em apuramento de mais-valia pela cessão de uma quota no capital de B., Lda. .

O Tribunal “a quo” decidiu nos seguintes termos, para o que aqui nos interessa:

Em face do exposto e nos termos das disposições legais atrás citadas:

a) Recusa-se a aplicação das normas ínsitas nos artigos 10.º, n.º 1, 3 e alínea a) do n.º 4 e 44.º do CIRS, quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte, por serem normas materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da capacidade contributiva, consagrado no artigo 104.º da CRP e, em consequência, determina-se a sua desaplicação do caso concreto.

b) Julga-se a presente impugnação PROCEDENTE e, em consequência, anula-se a liquidação de IRS do ano de 2011 n.º (…)027188 no valor a pagar de € 111.456,91, que inclui a liquidação de juros compensatórios n.º (…)418142, no valor de € 4.828,03, que se consubstancia na nota de cobrança n.º (…)247818, no valor de € 94.594,53, com todas as consequências legais.

2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da sobredita sentença ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15.09 (LTC), nos seguintes termos:

“O Ministério Público, representado pelo respetivo Magistrado junto deste Tribunal, notificado do teor da aliás douta sentença proferida com data de 17.06.2021, de fls. 215/246 (SITAF), dos autos supra referenciados, pela qual, e de entre o mais, foi recusada a aplicação das normas previstas nos artigos 10º, nº 1, 3, e alínea a), do nº 4, e 44º, ambos do CIRS, vem interpor o presente recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), e nº 3, da Constituição, e dos artigos 70º, nº 1, alínea a), 71º, nº 1, e 72º, nº 1, alínea a), e 3, todos da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, para o que deverá o mesmo ser admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Pretende-se, por isso, a apreciação das referidas normas dos artigos 10º, nº 1, 3, e alínea a), do nº 4, e 44º, ambos do CIRS, cuja aplicação foi recusada quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte, por serem normas materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da capacidade contributiva consagrado no artigo 104º, da Constituição.

Requer-se pois a V. Exa. se digne mandar admitir o presente recurso, seguindo-se os demais trâmites processuais até final.”

3. O Tribunal “a quo” admitiu o recurso, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (fls. 211).

4. O recurso foi recebido no Tribunal Constitucional.

O Ministério Público apresentou alegações, enunciando as seguintes conclusões:

1. Interpôs o Ministério Público recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta sentença de 17-06-2021, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra - Processo nº2813/14.7BELRS, «(…) nos termos do disposto nos artigos 280º nº 1 alínea a), e nº 3 da Constituição, e dos artigos 70º nº 1 al. a), 71º nº 1, e 72º nº 1, alínea a) e 3, todos da Lei da Organização, funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (…)».

2. Este recurso tem como objeto a douta sentença de fls. 188 a 203 dos autos a qual recusou a aplicação das normas ínsitas nos artigos 10º, nºs 1, 3 e alínea a) do nº 4 e 44º do CIRS, quando interpretadas no sentido de permitirem a tributação, no âmbito da categoria G do IRS, de rendimentos não percebidos ou postos à disposição do contribuinte, por serem normas materialmente inconstitucionais, por violação do princípio da capacidade contributiva, consagrado no artigo 104º da Constituição.

3. Começando por delimitar o objeto da decisão, afirmou o Mmo. Juiz a quo, que a questão essencial que importava apreciar e decidir prendia-se com a (i)legalidade do ato de liquidação de IRS, de 2011, designadamente, cumprindo aferir qual o valor que deve ser considerado como "valor de realização", para efeitos do cálculo da mais-valia tributada em IRS, e, por outro lado, importava determinar se a interpretação do artigo 10º, nºs 1 e 3 e alínea a) do nº 4 e artigo 44º, ao permitir a tributação de rendimentos não recebidos e incertos, por incumprimento do devedor, facto que foi reconhecido judicialmente, duplicando o montante do rendimento a tributar, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1º, 2º, 62º, 103º, nº 1 e nº 3 e 104º da CRP, para efeitos de desaplicação das referidas normas, ao caso concreto.

4. Para o impugnante, pelo facto de não ter recebido o valor total correspondente à alienação da sua quota, na sociedade B., o mesmo impugnante deveria ter sido tributado, apenas, pelo valor efetivamente recebido, isto é, € 67.500,00 e não pelo valor total de € 900.000,00. Já a Fazenda Pública sustenta que o ganho, inerente à referida alienação, considera-se obtido no momento da prática do ato, pelo que o ganho deve ser integralmente tributado no ano de 2011, uma vez que o valor da contraprestação corresponde ao preço estipulado entre as partes.

Questão prévia

5. Da leitura da decisão recorrida, afigura-se-nos estarmos perante um caso de «falsa» ou «aparente» desaplicação de normas. Se não, vejamos:

6. Em questão encontra-se a tributação das mais valias resultantes da alienação onerosa de partes sociais ou outros valores mobiliários, previstas no art. 10º nº 1 al. b) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS).

7. O nº 3 do mesmo artigo 10º dispõe que os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no nº1.

8. Já o nº 4 al. a) daquele artigo determina que o ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso.

9. Entende o Mmo. Juiz a quo, que a questão essencial que importava apreciar e decidir prendia-se com a (i)legalidade do ato de liquidação de IRS, de 2011, designadamente, cumprindo aferir qual o valor que deve ser considerado como "valor de realização".

10. Salvo melhor opinião, a resposta a essa questão encontra-se no art. 44º nº 1 al. f) o qual dispõe que, para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização, o valor da respetiva contraprestação.

11. Assim, na realidade, em questão está em saber o que deve ser considerado como o valor da respetiva contraprestação.

12. No caso, como visto supra, entende o impugnante que só deverá ser tributado por referência ao valor efetivamente recebido, isto é, € 67.500,00, já que só esse foi o valor da contraprestação. Já a Autoridade Tributária, entende que o valor da contraprestação, corresponde ao valor estipulado entre as partes aquando da alienação, considerando que, se tal valor não foi recebido na íntegra, tal será indiferente uma vez que naquele momento, que é o relevante nos termos do art.10º nº 3, criou-se um direito de crédito.

13. Perante estas duas interpretações distintas do mesmo artigo – o art.44º nº 4 al. a) do CIRS e do que deve considerar-se o valor de realização, (ou melhor, valor da contraprestação), o Mmo. Juiz a quo analisa as normas jurídicas aplicáveis e socorre-se dos princípios estruturantes do Código do IRS, mormente a conceção de rendimento acréscimo.

14. De igual forma, e no sentido de concluir por uma das interpretações possíveis, o Mmo. Juiz a quo apela ao art. 4º nº 1, da Lei Geral Tributáriaque consagra a medida da tributação assente na capacidade contributiva.

15. E, por fim, busca conforto na Constituição, bem como em decisões do Tribunal
Constitucional.

16. Após este périplo, o Mmo. Juiz acaba por concluir que o valor de realização a ter em conta para efeitos de tributação das mais valias, não poderá deixar de ser outro que não o valor efetivamente recebido, já que qualquer outra interpretação violaria o mencionado princípio da capacidade contributiva.

17. Assim, , não tendo ficado demonstrado, no caso, nem em sede de procedimento de inspeção tributária, nem nos autos, que o impugnante tenha recebido o total do valor estipulado, conclui o Mmo. Juiz a quo que este apenas poderá ser tributado pelo valor que comprovadamente recebeu.

18. Citando: Em conclusão, não ficou provado, nos presentes autos, que o Impugnante tivesse auferido a totalidade do preço de cessão da sua participação social, na sociedade B., à sociedade C., tendo-se comprovado, que recebeu, apenas € 67.500,00 dos € 900.000,00, contratualmente previstos, valor que foi declarado no anexo G da declaração de rendimentos [declaração de substituição], apresentada em 21.09.2012 [cf. alíneas G) e P) do probatório](…). Ora, não se comprovando o rendimento-acréscimo na esfera jurídica da Impugnante, por não ter recebido a totalidade do valor referente à alienação das sua participação social, na sociedade B., não pode ser tributado em sede de IRS sob pena de violação do princípio da capacidade contributiva, uma vez que a tributação se deve adequar ao esforço económico do contribuinte, devendo incidir sobre...

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