Acórdão nº 2318/18.7T8AVR.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelPEDRO DE LIMA GONÇALVES
Data da Resolução18 de Janeiro de 2022
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório AA intentou a presente ação contra BB e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação dos Réus no pagamento da quantia de €350.000,00, acrescida de juros moratórios.

O Autor alegou, em síntese, que: - no dia …/09/2014 sofreu um acidente de viação, ocorrido quando o Réu BB, que seguia por um caminho vicinal, ao pretender entrar na rua por onde circulava o Autor, via principal, o fez de forma repentina e inopinada, sem cuidar que Autor já circulava nessa via e a curta distância do seu ponto de interseção das mesmas; - na altura do acidente, o Réu fugia das autoridades, circulando em veículo sem seguro válido e eficaz; - na sequência do acidente, o Réu foi julgado e condenado pela prática do crime de condução sem habitação legal; - atenta a natureza da via por onde circulava o Réu, este devia ter cedido a passagem ao Autor; - por causa do acidente o Autor sofreu diversos danos não patrimoniais.

  1. Citados, os Réus vieram contestar: - o Réu BB – Impugnou, por desconhecimento, os danos invocados e acrescentou que a rua por onde seguia fica à direita daquela por onde seguia o Autor, com ela formando um entroncamento.

    O Autor, nos momentos que antecederam o acidente, circulava a uma velocidade superior a 70 km/hora, completamente desatento ao trânsito que circulava na via onde circulava e nas vias que intercetam a mesma.

    No local as vias são todas secundárias e semelhantes, não havendo qualquer hierarquia entre elas, pelo que o Autor devia ter dado prioridade ao Réu.

    Disse, ainda, que o Autor, anteriormente ao acidente, era já uma pessoa bastante doente, sendo o pedido indemnizatório manifestamente exagerado.

    - o Fundo de Garantia Automóvel – Alegou que o acidente é, simultaneamente, de viação e de trabalho, e o Autor já foi ressarcido, no âmbito laboral, só podendo reclamar uma indemnização pelos danos não abrangidos pela proteção conferida pelas leis laborais.

    Disse, ainda, que na ausência de qualquer sinalética que imponha outro proceder, deverá o condutor ceder a passagem ao veículo que se apresente pela direita, não sendo afastada esta regra em função das classificações das estradas e que é manifestamente exagerada a liquidação operada pelo Autor quanto aos danos peticionados.

  2. Realizou-se audiência prévia com elaboração de despacho saneador.

  3. Face à declaração de insolvência do réu BB, julgou-se, quanto a ele, extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, prosseguindo os autos quanto ao Fundo de Garantia Automóvel.

  4. Realizada a audiência de julgamento e proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Julgo parcialmente procedente por provada a presente acção condenando o Réu Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao Autor AA: 1 - A quantia de 112.500 € (cento e doze mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais.

    A esta quantia acrescerá os juros de 4% contados desde a prolação da sentença até efetivo e integral pagamento”.

  5. Inconformado com esta decisão, o Réu Fundo de Garantia Automóvel interpôs recurso de apelação; o Autor interpôs recurso subordinado.

  6. O Tribunal da Relação ... veio a proferir decisão, sendo o dispositivo do seguinte teor: “Pelas razões ditas, julga-se improcedente o recurso principal e parcialmente procedente o recurso subordinado e, em conformidade, considerando-se que ao autor não é de imputar qualquer responsabilidade/culpa pela ocorrência do acidente, condena-se o réu Fundo de Garantia Automóvel, do mais peticionado se absolvendo, no pagamento ao autor AA da quantia de 120.000,00€, a que acrescem juros desde a presente data e até integral pagamento.” 8.

    Inconformado com tal decisão, veio o Réu Fundo de Garantia Automóvel interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1. Resulta da factualidade provada nos autos a violação, por parte do autor, da regra de cedência de passagem, configurada nos artigos 29.º e 30.º n.º 1 do Código da Estrada; 2. O réu condutor provinha de uma estrada que se apresentava à direita do autor, pelo que a este se exigia que abrandasse ou imobilizasse o veículo de forma a permitir a passagem daquele; 3. As especiais circunstâncias que envolvem o sinistro dos autos, em especial o facto de o réu condutor circular num caminho de terra batida, designado por vicinal, em excesso de velocidade, sem habilitação legal para o efeito e em fuga às autoridades, relevam para a imputação de um juízo de elevada censura a este; 4. Contudo, não oblitera o comportamento infracional praticado pelo autor.

  7. Ambos, réu condutor e autor, contribuíram culposamente para a produção do sinistro, ainda que em proporção diferente.

  8. Donde se conclui pela repartição de responsabilidades entre o autor e o réu condutor, na proporção de 25% para o primeiro e 75% para o segundo, devendo o acórdão recorrido ser revogado em conformidade.

  9. Aonãodecidirassim,otribunalrecorrido,interpretaeaplicaincorrectamente a lei, violando, entre outros, o disposto nos artigos 29.º e 30.º do Código da Estrada e, bem assim, os artigos 483.º e 570.º do Código Civil.

    E conclui: “Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, nos termos acima peticionados”.

  10. O Autor contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1. O Respondente considera que nenhuma responsabilidade pela ocorrência do acidente de viação deve ser atribuída ao Autor, subscrevendo integralmente o entendimento plasmado no Acórdão do Venerando Tribunal da Relação ....

  11. Resulta dos autos fixada quanto à dinâmica do acidente, – por não ter sido impugnada pelo Autor ou pelo Réu – a matéria de facto constante dos pontos 13.1 a 13.14 da Fundamentação de Facto do douto Acórdão do Tribunal da Relação ...

    - que se transcrevem no corpo da presente e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

  12. O Tribunal a quo destacou o facto do condutor BB pretender “entrar naquela rua”, [rua ...] ou seja, mudar de direcção, tendo-o feito de “forma repentina, sem cuidar que o Autor (ou outrem) circulava na via alcatroada e foi embater no veículo conduzido pelo Autor, quando conduzia com taxa de alcoolémia superior ao permitido, sem habilitação para conduzir e em fuga à autoridade.” 4. O Tribunal Recorrido destacou o facto do condutor BB provir de um caminho de terra batida, de um “caminho vicinal”, esclarecendo a expressão vicinal, fazendo referência ao Decreto-Lei nº 34.593, de 11 de Maio de 1945 que o definia (alínea b) do seu artigo 6º), como aquele que “normalmente se destina ao trânsito rural”.

  13. A propósito dos caminhos vicinais a Decisão Recorrida faz referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.11.2006 [relator, Desembargador Cardoso de Albuquerque] e ao Acórdão da Relação de Lisboa de 11.03.2021 [relatora, Desembargadora Cristina neves] - transcritos no corpo do presente.

  14. O Tribunal a quo destaca o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1.07.2014 [relator, Desembargador João Diogo] em que se aprecia uma situação idêntica à do caso concreto – transcrito no corpo do presente – e onde se concluiu que “toda a culpa, efetiva, pela produção deste acidente deve ser imputada ao condutor do veículo ligeiro, por não ter observado, como devia, todas as cautelas necessárias à segurança do trânsito que, então, se processava na estrada nacional em que entrou inopinadamente (artigo 29.º n.º 2 do CE).

  15. Concluiu o Tribunal Recorrido que: “independentemente do nome dado ao caminho por onde circulava o condutor do veículo que veio a embater no veículo conduzido pelo autor, tratava-se visivelmente de um caminho de terra batida, ou seja, com piso menos aderente, que exigia especial atenção à velocidade imprimida ao veículo (artigo 25, n.º 1, al.

    J) do CE) e exigia um especial cuidado se se pretendia entrar na via alcatroada, mudando de direção, tudo um comportamento diferente daquilo que consistiu a condução do aludido condutor, aliás, não habilitado a conduzir, conduzindo com alcoolemia e em fuga à autoridade.” 8. Nenhum comportamento infracional imputável ao Respondente vem descrito nos factos apurados/provados, pelo que, nenhuma responsabilidade/culpa pela verificação do acidente de viação deve ser imputada ao Autor.

  16. Apesar de não existir qualquer sinalização no local do acidente, apenas teoricamente, caberia ao Respondente ceder passagem ao veículo conduzido por BB, nos termos preceituados no citado artigo 30º do Código da Estrada.

  17. “A regra da prioridade não deve aplicar-se irreflectidamente, sem atender àquilo que se poderá designar como uma natural hierarquia das estradas, sobretudo quando o veículo com prioridade provém de um caminho de terra batida ou em calçada, em relação a outro que circula numa estrada nacional” (vide Ac. Tribunal da Relação do Porto de 16/12/2009, disponível em www.dgsi.pt) 11. Quanto à circulação por caminhos de terra batida, parece não haver dúvida que a jurisprudência envereda no sentido de relativizar, senão mesmo excluir, por abusivo, o direito de prioridade quando se confronte em entroncamento estradas nacionais e caminhos de terra batida (vide Ac. TRP de 25/10/2007, vide AC. TRP de 13/10/1988, BMJ, 382º, 525 e de 08/06/1992, BMJ 418º, 853; AC. TRE de 20/03/1983 in CJ, tomo 2, 237, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

  18. Vem-se defendendo que ocorre a inexistência de prioridade, quer se esteja perante caminho particular ou mesmo caminho de domínio público vicinal.

  19. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/06/1997 (disponível em www.dgsi.pt) é peremptório em afirmar que “não goza de prioridade de passagem, apesar de se apresentar pela direita, o condutor de veículo automóvel, que sai de um caminho de terra batida (com aspecto de caminho particular, embora seja público) e entra numa estrada nacional larga, alcatroada e com bastante trânsito.” 14. O condutor BB deveria, antes de avançar para a faixa de rodagem da estrada asfaltada por onde transitava o veículo do Respondente, certificar-se...

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