Acórdão nº 34/09.0TBPVC.E2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Janeiro de 2022
Magistrado Responsável | CATARINA SERRA |
Data da Resolução | 12 de Janeiro de 2022 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO Recorrente: Diocese de Leiria-Fátima Recorridas: Pia União das Escravas …, AA e Luso & Luxo, Lda.
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A Diocese de Leiria-Fátima propôs acção contra Pia União das Escravas …, AA e Luso & Luxo, Lda.
Peticionou a autora: - Declaração de nulidade do acto de eleição da 2.ª ré como Superiora da Pia União das Escravas …, realizado em … de Maio de 2008 e exarada na acta eleitoral n.º 17 da Pia União das Escravas …, com fundamento no facto de o acto não ter sido presidido por Assistente Espiritual e depois confirmado pelo Bispo de Leiria-Fátima; - Declaração de nulidade da acta n.º 18, na qual foi ratificado o acto da 2.ª ré como Superiora da Pia União das Escravas …, com os mesmos fundamentos; - Declaração de nulidade da escritura de compra e venda, de 2 de Setembro de 2008, exarada a fls. 75 e s. do Livro de Notas para Escrituras Diversas do Cartório Notarial da Notária BB, que incide sobre os seguintes prédios:
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Prédio Urbano, sito em “...” ou ...”, na freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo ...05, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...92; b) prédio rústico, composto de terra de cultura, sito ou denominado “...” na freguesia e concelho do ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...27, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...93; com fundamento em falta de poderes de representação da 2ª Ré para outorgar tal escritura e porque se trata de bens eclesiásticos, cuja alienação carece e de autorização da autoridade eclesiástica.
- Cancelamento do registo de aquisição sobre os imóveis identificados.
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Foi proferido despacho saneador-sentença no qual se absolveu da instância reconvencional a autora, que havia sido demandada pela ré Luso & Luxo, Lda., na respectiva contestação, se julgou improcedente a excepção de declaração de nulidade dos Decretos Bispais emitidos em 15 e 29 de Julho de 2008 pelo ..., deduzida pela ré Pia União das Escrava … e “totalmente procedente a acção, por totalmente provada”.
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Inconformadas recorreram para o Tribunal da Relação as rés Luso & Luxo, Lda., e AA, tendo sido proferido Acórdão em 7.11.2019 que culminou com o seguinte dispositivo: “Por todo o exposto acordam nesta Relação em julgar as apelações parcialmente procedentes e em consequência:
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Revogar o despacho relativo à autoridade de caso julgado, quanto à natureza jurídica da Pia União, determinando-se a supressão do facto vertido em 4.1.1. da “Fundamentação de facto”; b) Revogar o saneador na parte em que conheceu do mérito da causa, retomando-se a audiência prévia para identificação dos temas da prova- uma vez que o objecto do litígio já foi fixado – e para os demais fins elencados nas alíneas f) e g) do art.º 597º do CPC.
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Manter no mais, o decidido”.
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Baixados os autos à 1ª instância, prosseguiram os mesmos os seus regulares termos, vindo a ser realizada audiência final e, em 12.10.2020, proferida sentença em que se considerou: “
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Procedente a excepção inominada de nulidade dos Decretos Bispais de 15 de Julho de 2018 e de 29 de Julho de 2018, de fls. 44 a 45 e 148 a 149, emitidos pelo Bispo de Leiria-Fátima, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e, em consequência, decreta-se a nulidade dos mesmos; b) Totalmente improcedente a acção, por não provada e, em consequência absolvem-se os Réus Pia União das Escravas …, AA e Luso & Luxo Lda, de todas os pedidos deduzidos pela Autora Diocese de Leiria Fátima”.
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Desta feita é a autora que, irresignada, recorre da sentença para o Tribunal da Relação ....
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Em 30.06.2021 proferiu o Tribunal da Relação ... um Acórdão, por maioria, com o seguinte dispositivo: “Por todo o exposto se acorda em julgar a apelação improcedente e se confirma a sentença recorrida”.
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Continuando inconformada, vem agora a autora Diocese de Leiria-Fátima recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.
Conclui as suas alegações do modo seguinte: “1º A questão da natureza dessa Associação ficou definitivamente arrumada no Acórdão do STJ de 0I.03.2016 (processo nº 2153/06.5TBCBR-C.CI.SI – relator Fonseca Ramos, disponível e www.dgsi.pt ) onde a respectiva natureza foi apreciada pela primeira vez numa ação de carácter não cautelar, tendo-se aí consagrado que a Pia União não é Associação Privada de Fiéis, mas Associação Pública de Fiéis .
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A decisão da natureza desta Associação nessa primeira ação, deve constituir autoridade de caso julgado quando volta a inserir-se no objecto das ações posteriores, como é o caso da presente, ainda que não sejam totalmente as mesmas partes ou pedidos e deve ser acatada por se impor a autoridade de caso julgado, por ser uma questão concreta, que se entende ter alcançado já resposta definitiva“.
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Tal natureza pública terá que ser pressuposto indiscutível para impedir a contradição de julgados.
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Por outro lado, se a eficácia do caso julgado material incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, essa eficácia estende-se à decisão das questões preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado, como é o caso da natureza da Pia União como Associação Pública ou Privada de Fiéis.
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Caso contrário, teremos ações onde a mesma Associação será considerada privada, aplicando-se o direito comum, outras onde será considerada pública, aplicando-se o direito canónico, de forma contraditória e sem fim .
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Deverá, pelo exposto, revogar-se a douta decisão recorrida, decidindo- se a autoridade ed e caso julgado ao douto Acórdão do STJ de 0I.03.2016 proferido no Processo nº 2153/06.5TBCBR-C.CI.SI, declarando- se que a Pia União se revesta da natureza de Associação Pública de Fiéis e julgando-se a acção procedente.
Sem prescindir, 7º A Pia União foi erecta canonicamente por Decreto de 02/03/1959 emitido pelo Bispo de Leiria Dom CC, tendo sido posteriormente feita comunicação de participação de erecção ao Governador Civil de Santarém e registada na Secretaria do Governo Civil de Santarém sob o nº 181 em 06/03/1959 (vide Decreto de Ereção já junto aos autos).
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A sua natureza pública e os fins religiosos que prossegue são bem ilustrados desde o início pelo pedido de erecção e reconhecimento da Pia União, em que o Bispo titular de então da Diocese de ..., enviou uma recomendação ao Bispo de Leiria, em 31/08/1957, em que expressamente refere: “… que se trata de pessoas sérias e que desejam realmente entregar-se ao serviço de Deus e das almas …” 9º A dependência da Pia União à Diocese de Leiria, fez sempre parte da vivência de ambas, como ilustra o relatório da visita canónica feita em 31/10/2000 (Vide Doc já junto aos autos), exclusiva das associações públicas de fiéis.
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As circunstâncias de a Pia União ter sido erecta canonicamente e de prosseguir fins religiosos, proclamados nos seus Estatutos e vividos pelas irmãs que faziam e fazem parte dessa comunidade religiosa, em obediência aos princípios evangélicos de castidade, pobreza e obediência à Igreja, são elementos caracterizadores da Pia União como Associação Pública de Fiéis.
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Conforme se constata, a Pia União foi erecta canonicamente no âmbito do anterior Código de Direito Canónico que não reconhecia nem previa a existência de associações privadas a quem fosse reconhecida a autonomia que atualmente é facultada às associações com essa natureza, pelo que desde logo sempre deveria ser considerada como uma Associação Pública de Fiéis.
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E isto porque, tendo o atual CDC aplicação não retroativa, a novidade da introdução da figura de associações privadas de fiéis com o regime de autonomia que lhes é caraterístico é insuscetível de aplicação às pessoas jurídicas canónicas existentes à data da sua entrada em vigor cujo regime de sujeição à autoridade eclesiástica era em tudo idêntico ao regime que no novo CDC veio a ser estabelecido (quase repetido) para as associações públicas.
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Está, assim, demonstrado substancialmente que a Pia União se reveste da natureza de Associação Pública de Fiéis, e que, por isso, a douta sentença recorrida, ao considerá-la como Associação Privada de Fieis e que poderia dispôr livremente dos seus bens deverá ser revogada.
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Devendo, em consequência, ser a douta sentença recorrida substituída por douto Acórdão que reconheça a Pia União como Associação Pública de Fiéis, que os seus bens se revestem da natureza de bens eclesiásticos, que a 2ª R. não tinha poderes para a representar no negócio de compra e venda em causa nos autos.
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Decretando-se que esse negócio de compra e venda é nulo por violar as normas de Direito Canónico relativas à alienação desses bens, ínsitas nos Cânones 1257, 1277 e 1292 do Código de Direito Canónico, porquanto, para esse efeito, é absolutamente irrelevante o apuramento factual de que a R. Luso e Luxo, Lda, actuou de boa-fé na celebração desse negócio.
Acresce que, 16º Está em causa a validade dos Decretos de 15 e 29 de julho de 2018, do Bispo de Leiria-Fátima que, declarando a natureza da Pia União como se tratando de uma Associação Pública de Fiéis, intervém no seio da sua vida interna e na sua organização enquanto Associação de Fiéis erigida canonicamente, ou seja, com personalidade jurídica canónica, com fundamento na aplicação de normas do Direito Canónico.
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Ou seja, trata-se de matéria relativa à organização e funcionamento de pessoa jurídica canónico-concordatária erigida no seio da igreja católica.
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Estando essa matéria vedada aos Tribunais Comuns, por força do disposto na Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 18 de Maio de 2004 e também por força dos dispositivos constitucionais aplicáveis conforme melhor se verá de seguida.
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Desde logo, há que atentar em que, nos termos do disposto no art.º 41º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP): “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto”.
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Trata-se aqui da emanação dos...
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