Acórdão nº 54/22 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução20 de Janeiro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 54/2022

Processo n.º 421/20

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Família e Menores de Guimarães (Tribunal Judicial da Comarca de Braga), em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade obrigatório ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, em processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais, em 18 de fevereiro de 2020 (fls. 56-63).

2. No que releva para o presente, a decisão recorrida recusou a aplicação da norma extraída do artigo 48.º, número 1, alíneas a), b) e c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (constante da Lei n.º 141/2015, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 24/2017 – doravante, RGPTC), em conjunto com o disposto no artigo 738.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, com fundamento na sua inconstitucionalidade. O tribunal a quo entendeu que tal dimensão normativa contraria os comandos dos artigos 1.º, 13.º, 18.º e 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (aludindo, ainda, a latere, ao artigo 63.º, n.º 3), «na medida em que de forma arbitrária e discriminatória o legislador não diferencia os níveis de rendimento, não estabelecendo como limite de aplicabilidade a preservação de montante equivalente ao I.A.S. [Indexante dos Apoios Sociais], não cumprindo, assim e também, a obrigação de diferenciação, quer quanto ao montante isento de desconto, quer, também, quanto às diferentes naturezas de que uma pensão se pode revestir (sobretudo no caso das de incapacidade), isentando-as, pelo menos, até o valor, do I.A.S.» (fls. 62, verso). Com isso, o juiz determinou a sua desaplicação in casu e ordenou a cessação de desconto da pensão de alimentos na pensão de invalidez auferida pelo devedor e condenou o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) a pagar a referida pensão de alimentos, sub-rogando-se o Fundo nos direitos da criança-credora contra o progenitor-devedor.

3. Perante esta decisão, o representante do Ministério Público junto do Tribunal a quo veio apresentar requerimento de interposição de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 64-70), que foi admitido (fls. 75). Nesta sequência, subidos os autos e verificando-se que se encontravam preenchidos os pressupostos processuais, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações (fls. 78).

4. O Ministério Público apresentou alegações, postulando pelo provimento do recurso e pela revogação da sentença, no seguinte sentido (fls. 80-87):

«2. Do Objeto do Recurso

2.1 Questão Prévia:

Conforme claramente decorre da leitura da Decisão recorrida, a norma aplicada pelo M.º Juiz ao caso em apreciação foi a da alínea c) do n.° 1 do artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGTPC) em conjugação com o n.° 4 do artigo 738° do Código do Processo Civil e não a alínea a) e b) do n.° 1 do referido artigo 48° do RGTPC.

[…]

Ora, na fundamentação da sentença foram dados como provados os seguintes factos: "Do processado resultam os seguintes factos com relevo para esta decisão:

1- A criança B., nascida aos 29/11/2006, é filha de A. e de C..

2- A pensão mensal a título de alimentos devidos a menor está fixada em 120 Euros, a atualizar anualmente de acordo com a taxa de inflação.

3- A mãe da criança é reformada por invalidez, auferindo uma pensão de 288,81 Euros. O pai, igualmente reformado por invalidez, aufere uma pensão de 375,73 Euros, ou seja, tem uma capitação inferior ao indexante aos apoios sociais (I.A.S.) - conforme informado pelo C.D.S.S. afls. 45A.

4- Não há ascendentes de 2 ° grau ou outros tios da criança em causa que tenham, conhecidamente, capacidade económica de prestar alimentos.

5- A criança reside em território nacional, Guimarães, vivendo em economia doméstica com a mãe.

6 - A criança tem um rendimento mensal per capita inferior ao I.A.S. (438,81 €, nos termos da Portaria n." 27/2020, de 31/01), 314,93 Euros (relatório do C.D.S.S. a fls. 38 e ss.). Não há outros factos relevantes para a decisão incidental."

Face a estes factos a Decisão recorrida fundamentou de Direito pela seguinte forma:

"O Direito

O progenitor aufere uma pensão de invalidez paga pelo Centro Nacional de Pensões no montante de 375,37 Euros, pelo que, numa interpretação literal da norma constante do art.º 48.°, n° 1, al. c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.), deveria, sem mais, ser ordenado o desconto da quantia aqui devida a título de pensão de alimentos a menor. No entanto, afigura-se-nos, ressalvado o devido respeito por diferente e superior entendimento, que tal norma padece de inconstitucionalidade por violar os princípios da dignidade humana, o da igualdade e o da proporcionalidade (bem como, no caso da al. c), o direito à proteção pelo sistema de segurança social), constantes do disposto nos artigos 1.°, 13.° e 1.° (e 63.°) da Constituição Portuguesa (C.R.P.), motivo pelo qual rejeitaremos a sua aplicação ao abrigo do disposto nos artigos 280.°, n.° 1, al. a), e 204.2 da C.R.P. (o que em nada contende com o princípio da separação de poderes...). De acordo com o texto da norma constante do art.º 48.°, n.° 1, al. c), do R.G.P.T.C., "[quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte: [c) Se] for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo- se pra tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários".

A norma em questão não estabelece na sua hipótese qualquer critério de diferenciação para aplicação da sua estatuição: nem entre os diferentes níveis de rendimento, estabelecendo um mínimo abaixo do qual o desconto não pode ser ordenado, nem entre os diferentes tipos de rendimento, não distinguido as pensões, sequer de incapacidade, até ao montante do indexante dos apoios sociais. É uma norma absoluta, sem qualquer limite ou exceção.

Os critérios de interpretação de uma norma constam do art.º 9.° do Código Civil (C.C.), deles fazendo parte a unidade do sistema jurídico, constando do art.° 10.° do C.C. a previsão de integração de lacunas da lei, por analogia.

Não contendo a norma qualquer limite para os descontos a ordenar, tem sido entendido na jurisprudência que se aplica o limite geral constante do art.º 738.°, n.° 4, do Código de Processo Civil (C.P.C.) "[o] disposto nos números anteriores não se aplica quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo".

Segundo o disposto no art.º 18.° da Portaria n.- 28/2020, de 31/01, "[o] quantitativo mensal das pensões de velhice do regime não contributivo é fixado em (euro) 211,79". Antes da redação em vigor do art.º 738. °, n.° 4, do C.P.C., o critério jurisprudencial considerava impenhorável o valor do rendimento social de inserção (R.S.I.), como critério de preservação do direito a uma subsistência minimamente condigna ou a um mínimo de sobrevivência.

Chegados aqui, temos que, independentemente da natureza e do montante do rendimento referido na hipótese da norma constante da al. c) do n.° 1 do art.º 48.° do R.G.P.T.C., ou das necessidades básicas da pessoa devedora de alimentos, seria deduzível qualquer quantia, desde que preservada a de 211,79 Euros mensais, mesmo que se trate, por exemplo, de uma pensão por incapacidade, como é o caso, e a pessoa não tenha outros rendimentos (e seja incapaz para os obter), ficando por isso com a quantia de 211,79 Euros para fazer face a todas as suas despesas, incluindo as com alimentação e as de saúde não comparticipadas; no caso concreto, ficaria com um pouco mais, 273,13 Euros."

Assim, as normas do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 48° do RGTPC não se podem considerar como ratio decidendi da Decisão recorrida, surgindo no decurso de toda a fundamentação como elemento argumentativo da posição tomada pelo Tribunal, como acontece, aliás, ao longo da sentença, relativamente às considerações de (in) constitucionalidade, sobre normas de diversos regimes contributivos e de impenhorabilidade, efetuadas pelo Tribunal. Não pode, pois, este Tribunal Constitucional conhecer do objeto do recurso no que respeita às normas das alíneas a) e b) do artigo 48° do RGTPC.

2.2. Assim, e seguindo os termos da Decisão recorrida, podemos considerar como único objeto do recurso a apreciação da constitucionalidade da norma da alínea c) do n.° 1 do artigo 48° do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (R.G.P.T.C.) em conjugação com o n.° 4 do artigo 738.° do Código do Processo Civil, quando interpretada no sentido de não diferenciar os níveis do rendimento da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos e não estabelecer como limite mínimo de aplicabilidade referencial para efeitos de penhorabilidade o montante equivalente ao IAS. (Destacado no original).

[…]

3. Da apreciação do mérito do recurso

3.1 Da análise da sentença resulta ter o Tribunal decidido, para além da recusa de aplicação das normas por inconstitucionalidade, manter a cessação de desconto da pensão de alimentos na pensão de invalidez auferida pelo devedor, no montante de 375,37 Euros, por inferior ao I.A.S. e condenar o F.G.A.D.M. a pagar mensalmente a C. a pensão de alimentos relativa à criança B., nascida aos 29/11/2006, no...

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