Acórdão nº 50/22 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Pedro Machete
Data da Resolução18 de Janeiro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 50/2022

Processo n.º 1037/20

1.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o B., S.A., este último instaurou, em 04/06/2015, contra C., E. e F., execução sumária para pagamento da quantia de €274.251,30, com base em escrituras de sucessivos contratos de mútuo, garantidos por hipotecas voluntárias incidentes sobre determinado prédio urbano, cuja aquisição, por doação, feita pelo executado C. e cônjuge, A., aos executados E. e F., se encontra inscrita a favor destes desde 17/03/2010.

Foi também inscrita sobre o mesmo prédio, na mesma data (17/03/2010), a doação do direito de uso e habitação feita pelos executados E. e F. a A., ora recorrente.

As referidas hipotecas foram inscritas a favor do Banco exequente, ora recorrido, sucessivamente, em 20/12/2002, 29/01/2003 e 23/12/2008.

No âmbito da referida execução, foi efetuada a penhora da nua propriedade daquele prédio, a qual foi registada em 11/10/2016, tendo sido, seguidamente, lavrado auto de penhora, datado de 21/10/2016, e, em 27/09/2018, o agente de execução decidiu proceder à venda do bem penhorado pelo valor base de €233.058,80.

O executado F. veio então requerer que fosse declarada nula a referida decisão de venda, alegando que se encontrava penhorado nos autos apenas a nua propriedade do prédio objeto da mesma.

Em primeira instância foi proferida a decisão de 27/06/2019, que deferiu parcialmente a arguição de nulidade invocada, determinando-se que a impugnada decisão de venda deveria ser substituída por outra em que seja anunciada a venda da nua propriedade do prédio e mencionado que sobre o mesmo se encontra registado o direito de uso e habitação, com data de 17/03/2010, que caducará com a realização da venda, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil.

Inconformados com tal decisão, o executado F. e ainda a ora recorrente, A., interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 02/12/2019, julgou improcedente a apelação, confirmando integralmente a decisão recorrida.

Veio então a ora recorrente, A., na qualidade de titular do mencionado direito de uso de habitação, pedir revista daquele acórdão da Relação, cautelarmente a título de revista excecional, ao abrigo das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, mas, em sede de exame preliminar, foi proferida decisão singular do juiz conselheiro relator no sentido de não se tomar conhecimento do objeto da revista.

A ora recorrente reclamou então para a conferência e, por acórdão de 14 de julho de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu julgar improcedente a reclamação, mantendo a decisão reclamada.

2. Notificada deste acórdão, a recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante “LTC”; cf. fls. 165-169/v.º) para apreciação da seguinte questão:

«[II. A] INCONSTITUCIONALIDADE do art.º 824.º n.º 2 do CPCivil, quando interpretado no sentido de que o direito ao uso e habitação de imóvel que corresponda a casa de morada de família, ainda que registado posteriormente ao registo de garantia real sobre o imóvel, caducará com a realização da venda, por violação do princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa» (v. também o n.º XXV do requerimento de interposição de recurso).

Na sequência de dúvidas suscitadas quanto à decisão recorrida, a recorrente esclareceu que «indicou que pretende interpor recurso do douto acórdão […] datado de 14.07.2020, quando na verdade o douto acórdão que pretende recorrer é o proferido em 02.12.2019 pelo Tribunal da Relação do Porto dado que é esse acórdão que fala na inconstitucionalidade que a recorrente pretende ver discutida e apreciada.».

Nessa sequência, depois de remetidos os autos ao Tribunal da Relação do Porto – o tribunal ora recorrido – foi admitido o recurso (cf. fls. 177) e, subidos os autos a este Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para alegar.

3. A recorrente apresentou alegações, que concluiu nos seguintes termos (cf. fls. 190-192):

«I. Pretende a recorrente ver discutida e apreciada a INCONSTITUCIONALIDADE do art.º 824.º n.º 2 do CPCivil, quando interpretado no sentido de que o direito ao uso e habitação de imóvel que corresponda a casa de morado de família, ainda que registado posteriormente ao registo de garantia real sobre o imóvel, caducará com a realização da venda, por violação do princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.

II. Tal entendimento viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.

III. De facto, entendeu a decisão recorrida pela caducidade do direito de uso e habitação detido pela aqui recorrente, sem que sequer se tenha ainda realizado a venda, permitindo a publicidade da venda do imóvel na sua integralidade e não apenas da sua nua propriedade, atendendo à caducidade do direito de uso e habitação que ocorrerá com a venda executiva.

IV. Tal questão encontra-se controvertida em diversas decisões judiciais, que perpassam todos os graus jurisdicionais, desde a 1.ª Instância ao Supremo Tribunal de Justiça, não sendo minimamente pacífica ou jurisprudencialmente assente;

V. Sendo certo que, o entendimento mais recente vai no sentido de que não se verifica a caducidade dos mesmos, mormente através de decisão do:

a. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 1357/17.0T8LSB-C.L1-1, datado de 30.04.2019 […] e [do]

b. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 27.11.2018, no Processo n.º l268/l6.6T8FAR.E1.S2 […].

VI. Destarte, em sede constitucional, releva a discussão da caducidade do uso e habitação no imóvel penhorado nos autos, detido pela aqui recorrente/executada sobre o aludido imóvel, que representa a sua casa de morada de família.

VII. In casu, o imóvel é a casa de morada de família da aqui executada/recorrente, tendo aí consagradas as suas necessidades asseguradas constitucionalmente pelo direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.

VIII. Acresce que, na discussão mais ampla da caducidade dos direitos reais menores de gozo que incidam sobre bens vendidos em processo de execução com garantia real/ónus hipotecário registado anteriormente, considerando como tal, nomeadamente os direitos do locatário, do comodatário, do titular do direito de uso e habitação, etc .. temos que tal questão redunda, no caso de imóveis destinados a habitação, como é o presente caso e o será na maioria, ao direito fundamental à habitação.

IX. Não pode a recorrente concordar com o teor do referido acórdão, na medida em que não comunga, com o devido respeito, do entendimento vertido a propósito destas matérias, nomeadamente por desconforme com a jurisprudência mais recente a esse respeito. Desde logo;

X. Entende a recorrente que não se verifica a caducidade do seu direito real menor de gozo, in casu de uso e habitação, e mesmo que se verificasse, tal entendimento está eivado de inconstitucionalidade, o que, a ser doutamente apreciado, julgado e determinado, importará a reversão da decisão proferida. Isto porque;

XI. Assumindo a sua pertinência constitucional na apreciação da violação do princípio constitucionalmente consagrado do direito à habitação, nos termos previstos no art.º 65º da CRPortuguesa, mais do que na sua natureza meramente programática, mas antes na necessidade de tal direito à habitação ter uma correspondência na prática, aplicado à interpretação jurisprudencial levada a cabo pelos Tribunais de normativos que contendem especificamente com tal direito à habitação, única e exclusiva, casa de morada de família da aqui recorrente.

XII. Aliás, a jurisprudência mais recente, precisamente no sentido de salvaguardar a tutela do direito à habitação, mais a mais nas circunstâncias sanitárias, sociais e económicas atualmente vividas, vai precisamente no sentido de NÃO se verificar a caducidade de tal ónus, ainda que constituído POSTERIORMENTE ao registo da garantia.

XIII. Tanto mais, aplicável ao direito de uso e habitação, na medida em que o direito de uso e habitação é um direito destinado à fruição e à satisfação de necessidades pessoais e familiares (artigo 1484.º, n.º 1, do Código Civil) é intransmissível e inalienável não podendo ser onerado (artigo 1488.º), sendo, por isso, um direito pessoalíssimo - cfr. nesse sentido, Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, pág. 395.

XIV. No mesmo sentido, afirma Menezes Leitão que os direitos de uso e habitação não atribuem um direito de gozo pleno sobre a coisa, atentas as limitações estabelecidas ao uso e fruição, sendo o seu uso funcionalizado e limitado pelas necessidades do seu titular e da sua família - cfr. Direitos Reais, pág. 371.

XVI. Seguindo tal entendimento, pode ver-se, entre outros, o Ac. da R.P. de 27/2/2007, disponível in www.dgsi.pt […].

XVI. In casu e relevante para a invocação do direito à habitação e para a declaração de inconstitucionalidade é o facto de o imóvel ser a casa de morada de família da aqui recorrente, tendo aí consagradas as suas necessidades asseguradas constitucionalmente pelo direito à habitação, nos termos do art.º 65º da CRPortuguesa.

XVII. Aliás, a respeito da legitimidade da apreciação constitucional que não meramente programática do Governo, doutamente se pronuncia o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 1357/l 7.0TSLSB-C.L1-1, datado de 30.04.2019.

XVIII. Assim se invoca a INCONSTITUCIONALIDADE do art.º 824.º n.º 2 do CPCivil, quando interpretado no sentido de que o direito ao uso e...

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