Acórdão nº 42/22 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução18 de Janeiro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 42/2022

Processo n.º 636/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., B. e C. (os ora recorrentes) intentaram contra D., S.A., uma ação declarativa, que correu os seus termos no Juízo Central Cível do Funchal com o número 2204/15.2T8FNC, pedindo a condenação do réu na restituição aos autores da quantia de €820.000,00 ou, em alternativa, no pagamento de indemnização de igual valor.

1.1. Por sentença de 27/06/2019, foi a ação julgada improcedente.

1.1.1. Desta decisão recorreram os autores para o Tribunal da Relação de Lisboa.

1.1.2. Por acórdão de 14/07/2020 do Tribunal da Relação de Lisboa, o recurso foi julgado improcedente.

1.1.3. Os autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) desta decisão e arguiram a respetiva nulidade, por omissão de pronúncia.

1.1.4. Por acórdão de 17/12/2020, o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu a arguição de nulidade da decisão.

1.1.5. Remetidos os autos ao STJ, o recurso de revista não foi admitido nos termos gerais e, por acórdão de 23/03/2021, também não foi admitido como revista excecional.

1.2. Os autores interpuseram, então, recurso do acórdão de 14/07/2020 (item 1.1,2., supra) do Tribunal da Relação de Lisboa para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos –, nos termos seguintes:

“[…]

A. e outros, autores e recorrentes nos autos de ação ordinária e recurso de apelação à margem identificados, não podendo conformar-se com o douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de [julho] de 2020, vêm, nos termos dos artigos 70.º, 75.º e 75.º-A da Lei 28/82, de 15/11, com alterações introduzidas pelas Leis n.ºs 143/85, de 26/11, 85/89, de 7/09, 88/95, de 1/09, e 13-A/98, de 26/02, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, só o fazendo agora por ter esgotado os recursos ordinários, sendo por isso o presente recurso tempestivo (n.ºs 5 e 6 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15/11).

O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15/11, porquanto o Acórdão recorrido procedeu à aplicação de disposições legais que adiante se identificarão, adotando interpretação que as inconstitucionaliza, por violação de princípios e preceitos constitucionais que também adiante se identificarão.

Tais inconstitucionalidades, com referência às normas interpretadas e aplicadas de forma que as inconstitucionaliza, com referência às respetivas disposições constitucionais, e princípios violados, são as seguintes:

1. A interpretação dada aos artigos 2.º, n.º 1, e 8.º da Lei 24/96, de 31 de julho, dissociadamente do disposto no artigo 373.º, n.º 3, do CC, inconstitucionaliza aquelas disposições, por preterição e violação do artigo 13.º (princípio da igualdade) e artigo 60.º da CRP (proteção do consumidor).

Efetivamente, a interpretação e a aplicação do artigo 2.º, n.º 1, e do artigo 8.º da Lei 24/96, de 31 de julho, que pretendem assegurar a concretização do Direito Fundamental, consagrado no artigo 60.º da Constituição, numa ótica do cidadão consumidor comum, não pode, neste caso concreto, dada a grave limitação visual do A., ser dissociada do disposto no artigo 373.º, n.º 3, do CC.

O legislador, consciente da maior vulnerabilidade e das limitações que alguém portador de cegueira, naturalmente, tem, exigiu a intervenção notarial, para garantir e assegurar a necessária informação, em todas as circunstâncias, aos cidadãos portadores de deficiência visual, de forma a garantir-lhes a proteção, que lhes é devida num Estado de Direito.

Só deste modo é efetivamente possível assegurar ao cidadão portador de enfermidade, que se traduza em cegueira, a informação e a necessária habilitação em relação aos vários atos, em pé de igualdade e com o alcance que a lei da proteção do consumidor, só por si garante ao cidadão comum, não portador de deficiência.

Não é, pois, possível, neste tipo de situações, dissociar a aplicação da lei de defesa do consumidor, das exigências do artigo 373.º, n.º 3, do CC, que não foram observadas, por força da interpretação adotada no acórdão recorrido, que a inconstitucionalizou.

Desta sorte, a solução decorrente da interpretação adotada pelo Tribunal recorrido, inconstitucionaliza, quer os citados artigos 2.º e 5.º da Lei da Defesa do Consumidor, como o artigo 373.º, n.º 3, do CC, tanto por violação do artigo 60.º da CRP, como por preterição do artigo 13.º da Lei Fundamental, ou seja, por violação do princípio da igualdade.

2. A mesma inconstitucionalidade se regista na interpretação do artigo 373.º, n.º 3, do CC, por violação dos artigos 13,º, 18,º, n.º 1, 37.º, 60.º e 71.º da CRP

O próprio Tribunal de Justiça da União Europeia, no domínio da relação do cidadão consumidor com as instituições de crédito, vem adotando jurisprudência particularmente exigente, no tocante à informação, que os bancos devem prestar ao cliente, previamente à celebração de contratos ou à consumação de atos com consequências para a relação entre eles estabelecida.

No dizer, designadamente, do acórdão de 20/09/2017 (Proc. C186/16 – …. e o ….., SA decidiu que essa informação deve ser tal que “o consumidor possa avaliar, com fundamento em critérios precisos e inteligíveis as consequências económicas que para ele decorrem de contratos e atos bancários”.

Que essa informação, no entender do Tribunal de Justiça, relativamente aos clientes/consumidores deve ainda ser “suficiente que os habilite a tomar decisões prudentes e fundamentadas”.

Como os autos mostram, no presente caso, passou-se exatamente o contrário do que, em termos do ordenamento Jurídico da União Europeia, que integramos, dever-se-ia ter registado.

Mas o acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia referido, vai mais longe, e lembra que: “incumbe ao juiz nacional verificar se o consumidor foi informado de todos os elementos suscetíveis de terem incidência no alcance dos compromissos que assume…”.

Também neste particular, aconteceu com o douto Acórdão recorrido exatamente o contrário, pois, o tribunal “a quo” demitiu-se totalmente dessa sua obrigação.

Aliás, toda a matéria de facto dada como assente revela bem, e confirma, que os bancos RR. não observaram, minimamente, o dever de informação que tinham para com os AA., cabendo-lhes, aliás, o ónus de provar que o tinham feito e não lograram demonstrá-lo.

O douto acórdão recorrido não tirou consequências da provada incapacidade visual de C., porque considerou que a inobservância do disposto no artigo 373.º, n.º 3, do CC não tem qualquer implicação quanto ao valor da declaração, que o documento lhe atribui, na medida em que não impede que tal elemento de prova seja abrangido pela livre apreciação, o que implica a inconstitucionalização daquela disposição do CC , por manifesta violação do disposto nos artigos 18.º, n.º 1, 13.º, 37.º, 60.º e 71.º da CRP, diretamente aplicáveis, as quais vinculam entidades públicas e privadas, do que resulta diferença de tratamento e consequente lesão, sem que se encontre nos autos justificação, nem fundamentos razoáveis para tal.

3. O mesmo acontecendo relativamente ao n.º 5 do artigo 607.º do CPC, por violação dos artigos 13.º, 18.º, 37.º, 60.º e 71.º e artigo 5.º, n.ºs 1, 2 e 3, do DL 446/85, de 25/10

Ao manter o decidido pela 1.ª instância, que considerou que a preterição da exigência do artigo 373.º, n.º 3, do CC, por ser imposta a subordinação à forma escrita, ou por esta ter sido a adotada pelos intervenientes, não impede o recurso à prova testemunhal e à livre apreciação, o Acórdão recorrido inconstitucionalizou o n.º 5 do artigo 607.º do CC e o n.º 3 do artigo 393.º do CC, por tal conduzir à violação dos citados artigos 18.º, 13.º, 37.º, 60.º e 71.º da CRP.

E a interpretação adotada, relativamente ao artigo 5.º, n.ºs 1, 2 e 3, do DL 446/85, de 25/10, bem como a relativa aos artigos 2.º, 8.º e 16.º da Lei 24/96, de 31/07, inconstitucionalizam-nos, ao considerar irrelevante a sua violação e ao entender, ou decidir, no sentido do ónus da prova dos deveres de informação, decorrentes das disposições citadas, não caber nem se impor ao banco R., conduzindo tal interpretação à sua inconstitucionalidade por violação dos artigos 13.º, 18.º, 37.º, 60.º e 71.º da CRP (v. Acórdão STJ de 28/01/1999).

4. Igualmente inconstitucionalizante do artigo 312.º e da alínea a) do artigo 323.º do CVM é a interpretação que o acórdão recorrido lhes dá, por suprimir as garantias constitucionalmente conferidas e, consequentemente, violar os artigos 37.º e 60.º da CRP

Igualmente a interpretação adotada, relativamente aos artigos 312.º e 323.º, alínea a), do CVM, que conduz a considerar o banco R. desvinculado do dever de informação e do ónus da prova da sua observância, acaba por suprimir as garantias conferidas pelos artigos 37.º, 60.º e 71.º da CRP, inconstitucionalizando as disposições referidas do CVM, o que para todos os legais efeitos se suscita.

[…]” (sublinhados acrescentados).

1.2.1. Após um conjunto de vicissitudes processuais irrelevantes para a apreciação do recurso, foi este admitido no Tribunal da Relação de Lisboa.

1.2.2. No Tribunal Constitucional, foi proferida, pelo relator, a Decisão Sumária n.º 546/2021, no sentido do não conhecimento do objeto do recurso. Assentou tal decisão nos fundamentos seguintes:

“[…]

2.2.1. Desde logo, os recorrentes não enunciaram, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, qualquer questão de inconstitucionalidade com adequada dimensão normativa.

Invocaram, é certo, a violação de princípios e regras constitucionais (cfr. item 1.1.1., supra). Todavia, não o fizeram numa...

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