Acórdão nº 1168/20.5T8FNC.L1-2 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 13 de Janeiro de 2022

Magistrado ResponsávelORLANDO NASCIMENTO
Data da Resolução13 de Janeiro de 2022
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

  1. –RELATÓRIO.

    … Empresa de Eletricidade …, S.A propôs contra … Imobiliária, Lda esta ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a sua condenação a entregar-lhe a quantia de € 185.058,32, acrescida de juros de mora à taxa legal para os juros comerciais vencidos desde a data dos vencimentos das faturas até à data de propositura da ação, no valor de € 58.819,46 e vincendos até integral pagamento, com fundamento, em síntese, em que no âmbito de um contrato entre ambas celebrado em 15/09/2005, lhe forneceu energia elétrica e lhe prestou serviços de instalação e reforço de ligações de baixa tensão, não tendo a mesma pago as facturas respectivas.

    Citada, contestou a R dizendo, em síntese que são verdadeiros os factos articulados pela A, invocando a exceção da prescrição e pedindo a absolvição do pedido.

    Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando improcedente a exceção da prescrição e a ação integralmente procedente, condenando a R a pagar à A a quantia de € 243.877,78, acrescida de juros vincendos à taxa legal aplicável aos créditos comerciais sobre a quantia de € 185.058,32, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

    Inconformada com essa decisão a R dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação, formulando as seguintes conclusões: A.–Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal – Juiz 2, sob o número de processo 1168/20.5T8FNC, através da qual o Meritíssimo Juiz em 28 de Julho de 2021, julgou improcedente a excepção deduzida de prescrição e integralmente procedente, por provada, a acção.

    B.–A Autora … Empresa de Electricidade …, S.A., ora Recorrida, intentou uma acção de processo comum contra a então Ré …Imobiliária, Lda., agora Recorrente. A acção tem em vista a cobrança de dívidas por facturas vencidas decorrentes do fornecimento de energia eléctrica. O valor alegadamente devido emerge de um contrato de fornecimento de energia eléctrica, datado de 15 de Setembro de 2005, celebrado entre as partes. Está em causa o pagamento de facturas entre Novembro de 2011 e Setembro de 2014, e entre Julho de 2016 e Fevereiro de 2018, perfazendo a quantia de € 185.058,32 (cento e oitenta e cinco mil e cinquenta e oito euros e trinta e dois cêntimos).

    C.–A … apresentou contestação e invocou a prescrição da obrigação de pagamento da dívida e, consequentemente, absolvição do pedido.

    D.–Por decisão datada de 25/07/2021, o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira julgou improcedente a excepção de prescrição deduzida e condenou a Ré no pagamento da quantia de € 243.877,78 (duzentos e quarenta e três mil oitocentos e setenta e sete euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de juros vincendos à taxa legal aplicável aos créditos comerciais sobre a quantia de €185.058,32, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

    E.–O Tribunal de Comarca da Madeira veio a aceitar o argumento, julgando por isso improcedente a excepção de prescrição e procedente a excepção de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. No caso da prescrição, e de forma muito sumária, porque a … teria reconhecido a dívida e, por conseguinte, tacitamente renunciado ao direito de a invocar em juízo - que se estendeu até 06 de Novembro de 2019 – pois só naquela data (alegadamente) a Ré informa a Autora de que considera a dívida prescrita, como uma mera obrigação natural e apenas nesse pressuposto, se dispunha a pagar as facturas posteriores aos anos a 2014, nada pagando relativamente às facturas dos anos de 2011 a 2014.

    F.–Para o Tribunal, a ... teria também excedido manifestamente os “limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social desse eventual direito a invocar a prescrição da dívida”, concluindo a sentença recorrida que a atitude da Ré “revela um claro venire contra factum proprium”.

    G.–O Tribunal a quo interpreta incorrectamente os institutos da caducidade e da prescrição.

    H.–Porque interpreta incorretamente tais institutos, interpreta incorretamente o abuso do direito de prescrição.

    I.–Por força do recurso da matéria de facto devem ser expurgados da matéria de facto dada como provada, os juízos conclusivos quanto à renúncia à prescrição a que correspondem aos pontos 2.1.21., 2.1.22., 2.1.23., 2.1.24, 2.1.26. e 2.1.27. e, além disso, deve ser acrescentada à matéria de facto dada como provada, por constarem de documentos juntos aos autos e não impugnados o conteúdo dos e-mails trocados pela ... e E.., designadamente nas seguintes passagens: “…Estamos a analisar toda a Conta Corrente e o IVA pago de algumas facturas para acertarmos e apurarmos devidamente os valores em divida.”; “Caro amigo Rui, Para teu conhecimento. Gostaria de propor uma reunião, antes de assinarmos o Plano de pagamentos, para detalharmos algumas situações. Abraço, José …”; “…Foram estes pedidos e de r...bolso do IVA das facturas que obrigaram a nos precaver, juridicamente, das posições assumidas, unilateralmente pela E...”; “Caro Paulo …, A E... não está a por em questão quaisquer análises no que concerne a perspectiva fiscal ou jurídica.”.

    J.–O erro de interpretação parte de o Tribunal a quo não ter reconhecido a natureza especial da caducidade e prescrição em questão.

    K.–Estão em causa a prescrição e caducidade previstas no artigo 10.º da Lei dos Serviços Essenciais (a Lei n.º 23/96, de 26 de julho). Ora, com a entrada em vigor dessa lei “pretendeu-se, inequivocamente, não só salvaguardar o utente das entidades com as quais se vê obrigado a contratar, mas também a defendê-lo de si próprio relativamente à possibilidade de sobre - endividamento por consumo de bens que tendem a satisfação de necessidades primárias, básicas e essenciais dos cidadãos” (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.12.2015, proc. N.º 98356/13.0YIPRT.P1).

    L.–Assim, a caducidade e prescrição em análise têm precisamente o efeito de impedir a cobrança de valores tão expressivos como os agora reclamados pela .... A ideia é não só impedir o sobre-endividamento de particulares com despesas a que não podem fugir, como incentivar os prestadores de serviços essenciais a cobrar tais valores atempada e regularmente.

    M.–Quanto à caducidade, o Tribunal a quo equivocou-se porque terá detectado, infundadamente, uma interrupção do prazo de caducidade. Ao que parece, terá presumido – erradamente – que a Recorrente ... teria reconhecido o direito caducado da ... até à data de 06 de novembro, dia em que a ... enviou um e-mail à ... em que anunciava a intenção de invocar a prescrição da dívida. Com esse e-mail, teria “cessado” a interrupção da caducidade prevista no artigo 331.º, n.º 2 do Código Civil.

    N.–Sucede que a caducidade é de ordem pública e conhecimento oficioso. Atendendo aos fins prosseguidos pela Lei de Serviços Essenciais, impõe-se uma interpretação particularmente estrita do reconhecimento do direito. Uma interpretação mais extensiva – em que simplesmente aludir à dívida resultasse no reconhecimento do direito à respetiva cobrança – redundaria numa desproteção do consumidor de serviços essenciais. Assim, o reconhecimento do direito tem de ser explícito e claro, sem qualquer vaguidade ou ambiguidade.

    O.–Ora, o Tribunal considerou que a ... reconheceu o direito da ... porque ocorreu uma proposta de acordo de liquidação da dívida. Não se refere a qualquer documento ou testemunho de onde tenha resultado esse conhecimento.

    P.–Ora, na dúvida, na falta de um reconhecimento categórico e inequívoco do direito em questão, o julgador deve considerar que o devedor do preço de serviços essenciais até pode querer solver parte da dívida, mas essa intenção de pagamento não se confunde com o reconhecimento do direito da ... ao valor em dívida, ou à sua cobrança em juízo. Não houve então reconhecimento do direito.

    Q.–Na falta de um tal reconhecimento, a ... é devolvida a regra geral do artigo 331.º, n.º 1 do Código Civil. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.

    R.–A acção não foi intentada no prazo legal. Pelo que o Tribunal a quo interpretou incorretamente o artigo 10.º, n.º 4 da Lei dos Serviços Essenciais e, bem assim, o artigo 331.º n.º 2 do Código Civil. A sentença recorrida deve ser nesta parte revogada, e substituída por outra, que declare procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de ação.

    S.–Por outro lado, o Tribunal a quo entendeu que o reconhecimento do direito era como que um pressuposto, que vigorou até a ... afirmar que invocaria a prescrição. Sucede que o reconhecimento do direito é uma declaração de vontade explícita, que ocorre em determinado momento. Por outras palavras, o devedor, quando reconhece o direito, não renuncia à caducidade, que é de resto um instituto de ordem pública, e é por isso irrenunciável. Assim, a caducidade pode ficar impedida no momento em que o direito é reconhecido, mas não fica perpetuamente impedida em virtude desse reconhecimento. Pelo contrário, um novo prazo de caducidade conta a partir da data de reconhecimento do direito, findo o qual o reconhecimento não mais serve como causa impeditiva da caducidade.

    T.–A proposta de acordo de que o Tribunal a quo extrai – erradamente, como vimos – um reconhecimento da dívida foi apresentada a 10 de abril de 2018 (cf. facto provado 2.1.20). Ora, a ação foi intentada mais de 6 meses depois desse suposto reconhecimento da dívida. Ainda que o reconhecimento tivesse ocorrido nessa data, o direito da ... já teria caducado na data em que a ação foi intentada. Pelo que a caducidade opera de uma forma ou de outra.

    U.–Subsidiariamente, o reconhecimento do direito podia, eventualmente, impedir a caducidade das dívidas associadas aos serviços prestados nos seis meses anteriores à proposta de acordo de 10 de...

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