Acórdão nº 932/21 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Dezembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução10 de Dezembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 932/2021

Processo n.º 1017/20

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., recorrente nos autos em que é recorrido o Ministério Público, inconformado com a decisão da Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que indeferiu a reclamação deduzida ao abrigo do disposto no artigo 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, destinada a sobrestar as diligências de busca e apreensão realizadas ao seu posto de trabalho e arquivo e a selar os elementos apreendidos com vista à preservação do segredo profissional, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido a 4 de novembro de 2020, decidiu não admitir o recurso.

2. Irresignado, vem deduzir o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 72.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 75.º e 75.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante «LTC)), apresentando requerimento nos seguintes termos:

«[…] 1. O Recorrente suscitou nos presentes autos, tempestivamente, perante o tribunal que proferiu o Acórdão recorrido e de forma processualmente adequada, a questão de (inconstitucionalidade normativa que vem agora trazer ao conhecimento e apreciação do Tribunal Constitucional.

2. Tal questão reporta-se à inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 20.º, n.ºs 1 e 4, 29.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, bem como do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, das normas constantes dos artigos 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados ("EOA"), 399.º, 400.º, 432.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Penal ("CPP"), interpretadas e aplicadas no sentido de que a decisão proferida pelo presidente do tribunal da relação, nos termos do artigo 11º do EOA, é irrecorrível.

Vejamos em detalhe:

Norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie

3. As normas resultantes dos artigos 77.º do EOA, 399.º, 400.º, 432.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP, interpretadas e aplicadas no sentido, genérico e abstrato, segundo o qual a decisão proferida pelo presidente do tribunal da relação, nos termos do artigo 77.º do EOA, é irrecorrível;

3.1. É inequívoco que o Acórdão recorrido aplicou as normas extraídas das disposições legais citadas, no sentido acima assinalado.

Com efeito, depois da transcrição de longas passagens de outros acórdãos, afirma-se expressamente no Acórdão recorrido o seguinte:

«retornando ao “grano”, a saber a recorribilidade do despacho do Presidente da Relação definitivo de uma reclamação ao amparo do artigo 77.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, diremos que a mesma não é admissível , por (i) se tratar de despacho proferido por entidade singular;

(ii) não se incluir no amplexo de recursos para que o Supremo Tribunal de Justiça se encontre orgânico-funcionalmente adstrito» (cfr. p. 31 do Acórdão recorrido - realce nosso).

3.2. Não resta, assim, a menor dúvida de que o Acórdão recorrido interpreta e aplica as normas resultantes dos artigos 77.º do EOA, 399.º, 400.º, 432.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP, no sentido, genérico e abstrato, segundo o qual a decisão proferida pelo presidente do tribunal da relação, ao abrigo do artigo 77.º do EOA, é irrecorrível.

Verificando-se, por conseguinte, uma completa identidade normativa entre a interpretação normativa genérica e abstrata cuja inconstitucionalidade o Recorrente tempestivamente suscitou, e que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, e a interpretação normativa que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou no Acórdão recorrido, como fundamento para a decisão de não admitir o recurso interposto pelo Arguido.

3.3. Em suma, tomando em consideração o exposto, sempre se terá de concluir que a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade o Recorrente invoca foi efetivamente aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão recorrido de 4 de Novembro de 2020, na medida em que consubstancia o fundamento jurídico determinante para a solução jurídica encontrada quanto à questão da admissibilidade (ou não) do recurso interposto pelo Recorrente da decisão proferida pela Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 11.º do EOA.

3.4. Note-se que, apesar de o Supremo Tribunal Justiça fazer referência no início do capítulo da fundamentação (cfr. p. 13 da decisão recorrida) aos artigos 434.º do CPP e 46.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), tal referência é um mero obter dictum, que não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido.

Assim é, desde logo, porque os aludidos preceitos limitam os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça à matéria de Direito, o que nunca esteve em causa no objeto do recurso para esse tribunal, visto que aquilo que foi impugnado foi sempre e apenas a interpretação e aplicação do Direito pela Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.

E, ademais, é confirmado pela circunstância de essas normas não surgirem em qualquer outro ponto do acórdão, nem sequer na transcrição integral do aresto no qual a decisão ora impugnada se arrima.

Mais ainda, o parágrafo final da decisão recorrida identifica claramente a sua ratio decidendi, pelo que aqui se reitera a sua citação:

«retornando ao “grano”, a saber a recorribilidade do despacho do Presidente da Relação definitivo de uma reclamação ao amparo do artigo 77. º do Estatuto da Ordem dos Advogados, diremos que a mesma não é admissível, por (i) se tratar de despacho proferido por entidade singular; (ii) não se incluir no amplexo de recursos para que o Supremo Tribunal de Justiça se encontre orgânico-funcionalmente adstrito» (cfr. p. 31 do Acórdão recorrido - realce nosso).

Não obstante, caso V. Ex.a venha a acolher entendimento diverso, deve ficar desde já consignado que a interpretação e aplicação de tais normas pelo tribunal recorrido constitui uma decisão surpresa, na medida em que os recorrentes, por maior que fosse a sua diligência na condução do litígio, não poderiam antecipar que um recurso apenas sobre a matéria de Direito fosse rejeitado com base nas normas que subtraem a matéria de facto à competência do Supremo Tribunal de Justiça. Pelo que se requer, a título subsidiário, que tais normas sejam incluídas no objeto do presente recurso de constitucionalidade.

Normas e princípios constitucionais que se considera terem sido violados

3.5. A dimensão normativa dos artigos 77.º do EOA, 399.º, 400.º. 432.º, n.º 1, alínea a), todos do CPP - e, caso assim se entenda, do artigo 434.º do CPP e 46.º da LOSJ -, no sentido explicitado no ponto 3 supra, acolhida e aplicada pelo Acórdão recorrido viola, entre o mais, os artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 20.º, n.ºs 1 e 4, 29.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, bem como o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

3.6. Com efeito, a interpretação normativa acolhida e aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão recorrido, para além de comprometer irreversivelmente o princípio do processo justo e equitativo, lesa o princípio do duplo grau de jurisdição e veda ao Arguido o exercício do direito ao recurso que lhe é constitucionalmente garantido.

É preciso não perder de vista que a decisão da qual o Arguido pretende recorrer contende com direitos fundamentais e foi tomada em primeira (e única) instância pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa. Tal como decorre diretamente da lei, quem decide sobre o incidente plasmado no artigo 77.º do EOA, pela primeira vez, é o Presidente do Tribunal da Relação, in casu, a Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.

3.7. Acresce que tal interpretação normativa não tem qualquer acolhimento na letra da lei - que não exceciona esta decisão do princípio geral da recorribilidade consagrado no artigo 399.º do CPP o que viola o princípio da legalidade em matéria criminal, cuja aplicação ao processo penal, nomeadamente em matéria de recursos, foi já afirmada pelo Tribunal Constitucional, entre outros, no Acórdão n.º 324/2013, que julgou inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, que vinha sendo feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, para restringir, sem qualquer correspondência na letra da lei, o recurso de decisões condenatórias proferidas, em recurso, pelas relações.

3.8. A dimensão normativa resultante da interpretação e aplicação das referidas normas pela decisão recorrida, na medida em que representa uma restrição dos direitos fundamentais acima enumerados, consubstancia ainda uma violação do princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes ou máximas de necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.

Peças processuais em que foi suscitada a questão de (in)constitucionalidade

3.9. A questão de (inconstitucionalidade normativa referida no ponto 3 supra foi suscitada no ponto 94 do recurso interposto pelo Recorrente (p. 22 do recurso), com entrada em 9 de junho de 2020, bem como na Conclusão § 12 (p. 58 do recurso), da mesma peça processual.

Nestes termos, por estar em tempo e ser parte legítima, requer a V. Ex.as se dignem admitir o presente recurso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de novembro de 2020, interposto ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 72.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 75.º e 75.º-A da LTC, tendo o mesmo por objeto a questão de (in)constitucionalidade acima mencionada.

Sendo admitido o recurso ora interposto, deve ser-lhe atribuído efeito suspensivo, com subida imediata e nos próprios autos, nos termos previstos no...

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