Acórdão nº 867/21 de Tribunal Constitucional (Port, 10 de Novembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução10 de Novembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 867/2021

Processo n.º 867/19

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), tendo por objeto a norma incriminatória prevista nos artigos 387.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, relativa a «maus tratos de animal de companhia».

O arguido foi condenado, em 1.ª instância, numa pena de 16 (dezasseis) meses de prisão efetiva pela prática de quatro crimes de maus tratos a animais de companhia agravados, e na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período máximo de 5 anos.

Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que lhe concedeu provimento parcial, suspendendo a execução da pena de prisão aplicada e mantendo, na parte restante, a decisão da 1.ª instância.

2. A decisão do Tribunal da Relação de Évora apresenta o seguinte teor:

«(...)

(a) Da (in)constitucionalidade do tipo de crime da condenação

O recorrente começou por suscitar o problema da constitucionalidade do tipo de crime de maus tratos a animais, a qual resultaria da circunstância de “não ser possível identificar na norma incriminadora dos maus tratos a animais, um bem jurídico”. E assentando “a punição do maltrato aos animais em valorações de clara inconstitucionalidade por violação dos artigos 18º, 27º e 62º da CRP”, “ao condenar o arguido HP, nos termos dos artigos 387º e 388º-A, do Código Penal, o Tribunal a quo violou deliberadamente e de forma grosseira o quadro jurídico Constitucional vigente”.

Como se vê, o recorrente fundamenta a sua asserção (de inconstitucionalidade) na alegada constatação de uma ausência de bem jurídico. E quanto a esta primeira questão, contrapôs, com interesse, o Ministério Público, na resposta ao recurso:

Nos termos do disposto no art.º 40.º n.º 1 do Código Penal “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Por seu lado, o art.º 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa refere que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

De acordo com estas normas, a tutela de bens jurídicos pelo direito penal tem de assentar na ordem constitucional dos direitos e deveres ali consagrados. Não desconhecemos que no caso do crime de maus tratos a animais de companhia o bem jurídico protegido não é evidente.

Alguma doutrina assinala que a proteção dos animais pode ser encontrada a partir do direito fundamental ao ambiente ou dos deveres objetivos de proteção ambiental plasmados no artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa. Outros enquadram a proteção nos chamados bens jurídicos meio ou bens jurídicos instrumentais.

Como refere ANTÓNIO JORGE MARTINS TORRES (In “A (in)dignidade jurídica do animal no ordenamento português”, Dissertação de Mestrado Profissionalizante na Área de Ciências Jurídico-Forenses apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2016, p. 69, disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32575/1/ulfd134671_tese.pdf) “Esta nova categoria de bens jurídicos, levando em consideração “o seu valor instrumental na proteção das condições essenciais necessárias à existência humana”, assume relevância penal, “constituindo como que uma técnica de tutela antecipada dos «valores-fins» essenciais”, isto é, o bem jurídico instrumental surge como um bem jurídico de proteção ou apoio mediato a toda uma série de valores implicados nas relações que se visam precaver. No caso do crime de maus tratos a animais de companhia, a tutela do bem-estar do animal representa não um fim, mas um meio ou instrumento de proteção mediata de outros bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, o da própria dignidade humana, o da justiça e da solidariedade, todos eles previstos no artigo 1.º da nossa Constituição.”

MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA (In Algumas Questões Controversas em Torno da Interpretação do Tipo Legal de Crime de Maus Tratos a Animal de Companhia, texto de uma palestra realizada na Faculdade de Direito de Lisboa, 29 de junho de 2017, p. 194, disponível em https://blook.pt/publications/publication/cddb197a4b61/) defende que os bens jurídicos protegidos pelo art.º 387.º do Código Penal são a integridade física (n.ºs 1 e 2) e a vida de animais de companhia (n.º 2).

ANA PAULA GUIMARÃES e MARIA EMÍLIA TEIXEIRA (In A proteção civil e criminal dos animais de companhia, artigo, com revisão por pares, publicado in O Direito Constitucional e o seu Papel na Construção do Cenário Jurídico Global, (Coord. Fábio da Silva Veiga e Rúben Miranda Gonçalves), Instituto Politécnico do Cávado e do Ave: Barcelos, abril 2016, pp. 513-524, disponível em: http://repositorio.uportu.pt:8080/bitstream) referem “o animal de companhia, em sede do direito penal, não constitui o bem jurídico tutelado, é sim, o objeto da ação criminosa. (…) Para além de já existirem incriminações sem sujeito de direito, a específica noção de bem jurídico aponta, citando Dias, J. Figueiredo, 2007, p. 114, para a “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso.” Os animais de companhia não são sujeitos de direitos mas são seres vivos dotados de sensibilidade, com estatuto jurídico próprio, a quem os seus donos devem assegurar o bem-estar e são merecedores de tutela jurídica mais concreta daquela que é reconhecida à fauna em geral (cfr. art.º 278.º Código Penal e art.º 66.º da CRP) e, como tal, a punição do maltrato a animais encontra respaldo em direitos e interesses constitucionalmente protegidos.

Nestes termos, inexiste qualquer inconstitucionalidade material do art.º 387.º do Código Penal.

Como se constata do excerto transcrito, não é pacífica a identificação do bem jurídico protegido pelo crime da condenação pela doutrina, bem jurídico que não será assim tão “evidente” (como refere o Ministério Público).

E se o art.º 18.º n.º 2 da CRP consagra os princípios da necessidade e da proporcionalidade do direito penal, positivando a regra de que o direito penal - direito fragmentário e de ultima ratio – deve ter uma função e proteção de bens jurídicos (“a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”), há que procurar concretizar esse bem jurídico no que respeita ao tipo em causa.

E aqui acompanhamos a posição expressa por Teresa Quintela de Brito (em Crimes Contra Animais: os novos Projetos-Lei de Alteração do Código Penal, Anatomia do Crime, nº 4, Jul-Dez 2016, p. 104), no sentido de que o bem jurídico é, ainda assim, descortinável.

E acompanhamo-la também no que respeita à identificação desse bem jurídico.

Após desenvolvida exposição sobre os variados diálogos doutrinários em confronto, a autora afirma que o bem jurídico protegido pelo tipo aplicado não reside na integridade física e na vida do animal de companhia.

É sim um “bem coletivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais diretos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação atual (passada e/ou potencial) que com eles mantém.

Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afetados pelas suas decisões e ações ”.

Assim sendo, e identificado o bem jurídico cuja ausência, segundo o recorrente, seria o fundamento de inconstitucionalidade, conclui-se pela conformidade constitucional do tipo de crime da condenação.»

3. Convidado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 79.º da LCT, veio o recorrente alegar, concluindo nos seguintes termos:

«1º O presente Recurso tem como objeto a fiscalização concreta da constitucionalidade dos artigos 387º e seguintes do Código Penal, porquanto os mesmos não é possível identificar a norma incriminadora dos maus tratos a animais, um bem jurídico.

2º O artigo 1576ª do Código Civil, determina que “São fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção.”

3º Assim, e como é obvio, no atual ordenamento jurídico português, não está estabelecida nenhuma destas relações jurídicas com animais.

4º Neste sentido vem Rogério Osório, Procurador Adjunto do Diap Porto, “Dos crimes contra os animais de companhia-Da problemática em torno da Lei69/2014, de 29 de agosto - (o Direito da Carraça sobre o Cão), afirmar que “não ser possível identificar na norma incriminadora dos maus tratos a animais, um bem jurídico.”

5º Isso mesmo já tinha percebido Roxin-defensor da teoria do bem jurídico ao afirmar que, no caso da proteção de embriões humanos, do meio ambiente, de animais e de gerações futuras, o princípio da proteção dos bens jurídicos não seria nenhuma ajuda, razão pela qual...

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