Acórdão nº 837/21 de Tribunal Constitucional (Port, 28 de Outubro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução28 de Outubro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 837/2021

Processo n.º 223/20

2.ª Secção

Relator: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, em que é recorrente o Ministério Público, e recorrida A., o primeiro interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), de sentença proferida pelo tribunal a quo, de 2 de dezembro de 2019, relativa a homologação de partilha, que recusou a aplicação da norma extraída do artigo 26.º-I, n.ºs 1 e 2, da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica e material, por violação dos artigos 20.º, 112.º, n.ºs 1, 2 e 5 e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP).

2. O tribunal a quo entendeu, na parte que ora releva da decisão recorrida, que:

«(...) Por decisões do ISS proferidas em 15.12.2014 foi atribuído a A. o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Veio a Exma. Sra. Notária, ao abrigo do preceituado no art. 26.°-I da Portaria n.° 278/2013, de 26.08, requerer seja aferido se a referida interessada, em função da decisão homologatória de partilha, adquire meios económicos suficientes para proceder ao pagamento dos montantes de cuja liquidação foram dispensadas em virtude da concessão de apoio judiciário, e, na afirmativa, a respectiva condenação no ressarcimento dos montantes despendidos pelo fundo previsto no artigo 26.°-A e pelo IGFEJ ao abrigo da mencionada portaria e da LAJ.

Cumpre aferir, a título prévio, se é ao juiz que incumbe fazer essa apreciação.

O apoio judiciário é uma das modalidades de protecção jurídica e encontra-se regulada pela Lei n.° 34/2004 (LAJ - cfr., designadamente, o seu art. 6.º/1).

A decisão sobre a concessão de protecção jurídica compete não aos tribunais, como aconteceu até à entrada em vigor da LAJ, mas sim ao dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência ou sede do requerente, conforme resulta do preceituado no art. 20.° do mencionado diploma legal.

A este nível, a intervenção judicial apenas ocorre se for interposto recurso da decisão que o referido dirigente máximo proferir sobre um pedido de concessão de protecção jurídica que lhe seja formulado (cfr. art. 27.° LAJ).

O art. 10.° LAJ prevê expressamente a possibilidade de, em determinadas circunstâncias (nomeadamente se o requerente ou o respectivo agregado familiar adquirirem meios suficientes para poder dispensá-la - cfr. n.° lal. a)), a protecção jurídica ser retirada, sendo que essa retirada tanto pode ser efectuada oficiosamente, como a requerimento do MP, da parte contrária, do patrono nomeado ou do solicitador de execução designado (cfr. art. 10.º/3 LAJ); contudo, nada neste normativo (nem nos seguintes) esclarece quem tem competência para tomar a decisão de revogação da protecção jurídica concedida.

Salvador da Costa, em anotação ao art. 10.° LAJ, considera que a lei atribui competência para a decisão do incidente de retirada de protecção jurídica aos serviços de segurança social – Apoio Judiciário, 6ª Ed., Almedina, 2007, pág. 68.

Tal parece ser, efectivamente, a intenção legal: no art. 10.º/5 prevê-se que “Sendo retirada a protecção jurídica concedida, a decisão é comunicada ao tribunal competente e à Ordem dos Advogados ou à Câmara dos Solicitadores, conforme os casos”. Ora, se a decisão para a retirada da protecção jurídica fosse incumbência do tribunal onde a causa estivesse pendente, desnecessária seria a previsão expressa da comunicação dessa decisão ao referido tribunal - pois que teria sido o próprio destinatário da comunicação a tomar a decisão comunicanda.

Por outro lado, sob a epígrafe “Aquisição de meios económicos suficientes”, o art. 13.° LAJ prevê que:

“1 - Caso se verifique que o requerente de protecção jurídica possuía, à data do pedido, ou adquiriu no decurso da causa ou no prazo de quatro anos após o seu termo, meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido declarado isento, é instaurada acção para cobrança das respectivas importâncias pelo Ministério Público ou por qualquer outro interessado.

2 - Para os efeitos do número anterior, presume-se aquisição de meios económicos suficientes a obtenção de vencimento na acção, ainda que meramente parcial, salvo se, pela sua natureza ou valor, o que se obtenha não possa ser tido em conta na apreciação da insuficiência económica nos termos do artigo 8.°.

3 - A acção a que se refere o n.° 1 segue a forma sumaríssima, podendo o juiz condenar no próprio processo, no caso previsto no número anterior.

4 - Para fundamentar a decisão, na acção a que se refere o n.° 1, o tribunal deve pedir parecer à segurança social.

5 - As importâncias cobradas revertem para o Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas de Justiça, I. P.

6 - O disposto nos números anteriores não prejudica a instauração de procedimento criminal se, para beneficiar da protecção jurídica, o requerente cometer crime.”

Ou seja:

Quando no decurso de uma acção judicial o beneficiário de apoio judiciário adquire meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido declarado isento nos termos da LAJ não é na própria acção que tal questão é decidida, a título incidental, mas sim em acção autónoma, a instaurar pelo MP ou por qualquer outro interessado, para a qual o beneficiário de apoio judiciário é citado, na qualidade de Réu, podendo, como tal, arrolar testemunhas, e sendo obrigatoriamente solicitada a emissão de parecer ao ISS para efeitos de prolação da decisão.

Ora, o art. 26.°-I da Portaria n.° 278/2013, de 26.08, parece instituir regime distinto daqueles supra descritos.

Lê-se neste artigo, para o que aqui releva, que:

“1- Nos processos de inventário em que algum interessado beneficie de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o notário, quando procede à remessa do processo para o tribunal para efeitos da homologação da partilha prevista no n.° 1 do artigo 66° do regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.° 23/2013, de 5 de março, deve requerer ao juiz que, nos termos do artigo 13.° da Lei n.° 34/2004, de 29 de julho, avalie se o interessado adquire, em função da decisão homologatória de partilha, meios económicos suficientes para pagar os montantes de cujo pagamento foi dispensado em virtude da concessão de apoio judiciário, e, se for o caso, o condene no ressarcimento dos montantes despendidos pelo fundo previsto no artigo 26.°-A e pelo IGFEJ ao abrigo da presente portaria e da Lei n.° 34/2004, de 29 de julho.

2- Nos casos em que o juiz possa proferir decisão relativa ao pedido de homologação da partilha, mas não disponha ainda de elementos suficientes para apreciar a questão referida no número anterior, aquela é logo proferida, sendo a questão referida no número anterior decidida em apenso próprio.”

Da concatenação destes dois normativos resulta que no âmbito de um processo de inventário (que actualmente não tem cariz judicial), incumbirá ao juiz proferir decisão sobre a responsabilização do beneficiário de apoio judiciário pelo pagamento das custas do processo não no âmbito de uma acção intentada especificamente para o efeito, mas sim a título incidental e sem obrigatoriedade quer da audição do visado, quer da solicitação de parecer ao ISS, quer da inquirição de testemunhas.

Tal corresponde a uma diminuição clara das garantias de defesa estabelecidas no art. 13.° LAJ, o que viola o disposto no art. 20.º/1 CRP (onde se preceitua que “A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (...)”.

Mas para além de violador do disposto no art. 20.º/1 CRP, o art. 26-°-I/l e 2 da Portaria n.° 278/2013, de 26.08, é ainda inconstitucional por violação quer do disposto no art. 112.º/1, 2 e 5 CRP, quer do disposto no art. 165.º/1/al. b) CRP.

Vejamos.

A CRP define quais são os actos legislativos: leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais (art. 112.º/1 CRP).

As leis e os decretos-leis têm, em princípio, igual valor (art. 112.º/2 CRP).

Uma portaria é um regulamento governamental (art. 138.º/3/al. c) Código de Procedimento Administrativo - CPA), normas jurídicas gerais e abstractas emitidas pelo Governo no exercício de poderes jurídico-administrativos que visam a produção de efeitos jurídicos externos (art. 135.° CPA).

Ou seja, uma portaria não é um acto legislativo nos termos e para os efeitos do disposto no art. 112.º/1 CRP e como tal tem uma posição infra-legal.

Por isso, aliás, o art. 136.º/1 CPA expressamente prevê que “A emissão de regulamentos depende sempre [sublinhado meu] de lei habilitante.”, acrescentando o n.° 2 que “Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou, no caso de regulamentos independentes, as leis que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.

Ora, o art. 112.º/5 CRP é claro ao prescrever que nenhuma lei pode conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.

Significa isto, nomeadamente, que uma lei ou um decreto-lei não podem ser modificados por uma portaria.

Acontece que o art. 26.°-I/l e 2 da Portaria n.° 278/2013 modifica o regime legal estabelecido pelo art....

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