Acórdão nº 687/21 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Agosto de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução30 de Agosto de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 687/2021

Processo n.º 830/2021

Plenário

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

I. Relatório

1. O Presidente da República vem, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, submeter à apreciação deste Tribunal, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, as normas constantes do artigo 5.º - “na parte em que altera o artigo 17º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro” - do Decreto n.º 167/XIV, que «transpõe a Diretiva (UE) 2019/713 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime, e outros atos legislativos», aprovado pela Assembleia da República (doravante, «AR»), em 20 de julho de 2021, publicado no Diário da Assembleia da República, Série II-A, número 177, de 29 de julho de 2021, que lhe foi enviado para promulgação como lei e recebido em 4 de agosto de 2021.

2. Os preceitos ora questionados do Decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República têm o seguinte teor:

«Artigo 5.º

Alteração à Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro

Os artigos 3.º, 6.º, 17.º, 19.º, 20.º, 21.º, 25.º e 30.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, passam a ter a seguinte redação:

(...)

Artigo 17.º

Apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante

1 – Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão.

2 – O órgão de polícia criminal pode efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo 15.º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora, devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas.

3 – À apreensão de mensagens de correio eletrónico e de natureza semelhante aplica-se o disposto nos n.os 5 a 8 do artigo anterior.

4 – O Ministério Público apresenta ao juiz, sob pena de nulidade, as mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.

5 – Os suportes técnicos que contenham as mensagens apreendidas cuja junção não tenha sido determinada pelo juiz são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.

6 – No que não se encontrar previsto nos números anteriores, é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal».

Segundo o requerente, as normas questionadas poderão padecer do vício de inconstitucionalidade material, por violação do direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, na interpretação que lhe tem sido dada pelo Tribunal Constitucional, e do direito à utilização da informática, não respeitando a exigência de proporcionalidade resultante do regime material dos direitos, liberdades e garantias, conforme decorre da conjugação do artigo 18.°, n.º 2, respetivamente, com os artigos 34.°, n.º 4, por um lado, e com o artigo 35.°, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP).

3. Os fundamentos apresentados no pedido para sustentar a inconstitucionalidade dos preceitos impugnados são os seguintes:

«[…]

Pelo Decreto nº 167/XIV, a Assembleia da República aprovou a lei relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime, e outros atos legislativos.

O Decreto em causa procede à transposição de Diretiva europeia. Contudo, e como se admite na exposição de motivos da própria proposta de lei, o legislador aproveitou a oportunidade para alterar normas não diretamente visadas pela Diretiva.

É o caso da alteração ao artigo 17º da Lei do Cibercrime. Com efeito, como referido na exposição de motivos: “Noutro plano, e ainda que se trate de um aspeto não respeitante à transposição da Diretiva (UE) 2019/713, aproveita-se o ensejo para ajustar o artigo 17.º da Lei do Cibercrime, cujo teor tem gerado conflitos jurisprudenciais que prejudicam a economia processual e geram dúvidas desnecessárias.

Este ajustamento tem como propósito clarificar o modelo de apreensão de correio eletrónico e da respetiva validação judicial.

Visa-se, por um lado, esclarecer que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar está sujeita a um regime autónomo, que vigora em paralelo com o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal. Este último regime apenas se aplica à apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar a título subsidiário, e com as necessárias adaptações.

Visa-se, por outro lado, esclarecer que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar guardadas num determinado dispositivo, embora incidindo sobre dados informáticos de conteúdo especial, não é tecnicamente diferente da apreensão de outro tipo de dados informáticos. Assim, deve o Ministério Público, após análise do respetivo conteúdo, apresentar ao juiz as mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.

Esta solução procura replicar, no domínio das mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar, a solução presentemente aplicável aos dados e documentos informáticos cujo conteúdo possa revelar dados pessoais ou íntimos, pondo em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, nos termos do n.º 3 do artigo 16.º da Lei do Cibercrime”.

É o seguinte o conteúdo da alteração em causa:

“Artigo 17.º

Apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante

1 – Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão.

2 – O órgão de polícia criminal pode efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo 15.º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora, devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas.

3 – À apreensão de mensagens de correio eletrónico e de natureza semelhante aplica-se o disposto nos n.ºs 5 a 8 do artigo anterior.

4 – O Ministério Público apresenta ao juiz, sob pena de nulidade, as mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.

5 – Os suportes técnicos que contenham as mensagens apreendidas cuja junção não tenha sido determinada pelo juiz são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.

6 – No que não se encontrar previsto nos números anteriores, é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal”.

Deste modo, como se vê, a alteração em causa não constitui um mero “ajustamento”, mas a uma mudança substancial no paradigma de acesso ao conteúdo das comunicações eletrónicas, admitindo-se que esse acesso caiba, em primeira linha, ao Ministério Público, que só posteriormente o apresenta ao juiz.

O Tribunal Constitucional tem dedicado atenção recente, numa leitura estrita, ao acesso por parte de entidades públicas às comunicações, sejam no seu conteúdo, sejam os metadados (vd. Acórdão TC n.º 464/2019).

Por outro lado, como bem alerta a Comissão Nacional de Proteção de Dados no seu parecer (Parecer 2021/74), jurisprudência recente do Tribunal de Justiça da União Europeia, em caso semelhante, entendeu que o Ministério Público, por deter a ação penal, não possui a independência requerida para apreciar a necessidade de acesso ao conteúdo das comunicações, razão pela qual essa tarefa deve ser cometida ao juiz.

O regime aprovado parece divergir, por outro lado, do disposto no artigo 179º do Código do Processo Penal, no qual a intervenção do juiz ab initio é indispensável. Esta é também a opinião expressa pela Comissão Nacional de Proteção de Dados no seu parecer.

Com efeito, é o seguinte o conteúdo do artigo 179º do Código do Processo Penal:

“Artigo 179.º

Apreensão de correspondência

1 - Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar...

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