Acórdão nº 668/21 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Agosto de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Assunção Raimundo
Data da Resolução05 de Agosto de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 668/2021

Processo n.º 484/21

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Assunção Raimundo

Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, A. e B., inconformados com a decisão de primeira instância que os condenou, respetivamente, pela prática de um crime de associação criminosa e de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previstos e punidos pelos artigos 28.º, n.º 2, 21.º e 24.º, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal, numa pena única de nove anos de prisão, e pela prática, em co-autoria material, na forma consumada e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 25.º, alínea a), do mesmo diploma, por referência à tabela I-B anexa, e artigos 75.º e 76.º do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão efetiva, deduziram recurso para aquele Tribunal da Relação que, por acórdão de 20 de janeiro de 2021, julgou totalmente improcedente o recurso interposto pela segunda e julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelo primeiro, alterando as penas parcelares aplicadas, que foram fixadas em cinco anos e oito meses, para o crime de associação criminosa, e em cinco anos e seis meses de prisão, para o crime de tráfico de estupefacientes agravado, bem como a pena única, que foi fixada em sete anos de prisão.

Notificados do teor do acórdão, suscitaram a sua nulidade, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 24 de março de 2021, julgado improcedentes as arguidas nulidades.

Novamente inconformados, ambos deduziram recursos para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, doravante LTC) - cf. fls. 363-365 e 367-369.

3. Através da decisão sumária n.º 387/2021, proferida ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC, foi decidido não conhecer do objeto de ambos os recursos, com os fundamentos seguintes:

«[…]

4. Como decorre da leitura conjugada do disposto nos artigos 70.º, n.º 1 e 75.º-A, n.º 1 e 2 da LTC, o recurso de constitucionalidade deve ser interposto, além do mais, através de requerimento de que conste a identificação precisa da decisão recorrida.

Neste caso, em nenhum dos requerimentos de interposição de recurso é indicada, com exatidão, a decisão recorrida, sendo certo que, havendo dois acórdãos prolatados pelo Tribunal da Relação de Coimbra, seria devida essa indicação. Não obstante, e uma vez que os recorrentes se referem à “decisão de mérito” e ao acórdão “que confirma a decisão de 1.ª instância, pela não suspensão da execução de pena”, concluir-se-á que ambos pretendem sindicar o acórdão datado de 20 de janeiro de 2021, que se considera a decisão recorrida.

5. Antes de entrar na análise concreta de cada um dos recursos deduzidos nos presentes autos, importa igualmente referir que, nos recursos de constitucionalidade deduzidos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, constitui um ónus da parte delinear o objeto do recurso, enunciando a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, devendo essa interpretação ou critério normativo sindicado – claramente delineado no respetivo requerimento de interposição de recurso – coincidir com a ratio decidendi da decisão recorrida.

Por outro lado, nestes casos, a abertura dessa via de recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe também que a questão, sob apreciação, adquira relevância normativa, por transcender o caso concreto submetido a julgamento, e os seus contornos subsuntivos, de aplicação do direito aos factos apurados. Isto é, ao Tribunal Constitucional não compete apreciar a validade das decisões judiciais no que se reporta à eventual violação de preceitos infraconstitucionais ou à eventual incorreção da interpretação e aplicação desses mesmos preceitos, mas sim apreciar a validade de critérios normativos – devidamente destacados da decisão concreta – face ao bloco de constitucionalidade relevante, encontrando-se os seus poderes de cognição limitados à norma ou normas que a decisão recorrida, consoante os casos, tenha aplicado ou tenha recusado aplicação (artigo 79.º-C da LTC).

Do recurso de constitucionalidade deduzido por A.

6. No seu requerimento de interposição de recurso, vem o recorrente submeter à apreciação deste Tribunal Constitucional nove questões de inconstitucionalidade.

Constata-se, porém, que o recorrente se pretende distanciar das dimensões normativas efetivamente aplicadas pela decisão recorrida, afirmando expressamente, no seu requerimento de interposição de recurso, que “(…) não está em causa a interpretação levada a cabo nos presentes autos mas sim em toda e qualquer outra situação similar, entendendo-se que a injustiça se mostrará sempre existente em razão da perduração da concepção que permita tal punição acrescida. (…)”.

Ora, como se referiu, atenta a instrumentalidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade em relação ao processo-base, a utilidade deste recurso depende de a decisão proferida no processo-base ter feito aplicação, como ratio decidendi, da dimensão normativa arguida de inconstitucional, uma vez que, se tal não suceder, uma eventual decisão de provimento do recurso de constitucionalidade não teria qualquer impacto ou a virtualidade de determinar a reforma da decisão recorrida, como impõe o artigo 80.º, n.º 2, da LTC.

Vejamos, então, cada uma das questões de (in)constitucionalidade suscitadas.

6.1. A primeira questão de constitucionalidade que o recorrente vem submeter à apreciação deste Tribunal diz respeito ao artigo 358.º do Código de Processo Penal (CPP), defende que é “inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade bem como do acusatório, o entendimento e dimensão normativa do art. 358º n.º 1 CPP segundo o qual "Para efeitos de condenação pela prática de crime de associação criminosa, com substancial absolvição de arguidos por tal prática e condenação de apenas um número reduzido face àqueles que se mostravam acusados, não se mostra necessária a comunicação de alteração não substancial de factos, a dar conta de tal redução do núcleo de agentes do crime".

Mas essa dimensão normativa não foi aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida. Com efeito, a este respeito, afirma, claramente, o acórdão recorrido:

“(…) Nenhuma das alterações não substanciais efetuadas pelo tribunal coletivo se refere ao recorrente A., que aliás nada opôs às comunicações efetuadas, não tendo as mesmas qualquer relevo ao nível quer dos factos que lhe eram imputados, quer quanto à qualificação jurídica dos mesmos factos. Acresce que o arguido A. não apresentou recurso dos despachos proferidos (nem para tanto teria legitimidade, por não ter interesse em agir – art. 401.º, n.º 1, alínea b), a contrario). (…)”.

Daqui decorre que o recorrente enuncia uma questão de (in)constitucionalidade construindo uma interpretação normativa que não constituiu fundamento ou critério de decisão acolhido pela decisão recorrida, afastando-se irremediavelmente da norma (dimensão normativa) efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido. Ora, a não aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente obsta, nesta parte, por inutilidade, ao conhecimento do objeto do recurso.

6.2. O recorrente enuncia a segunda questão de constitucionalidade do seguinte modo: “[m]ostra-se inconstitucional, por violação do princípio da vinculação temática ao objeto do processo bem como demais garantias de defesa, o entendimento e dimensão normativa do art. 358º n.º 1 CPP segundo o qual "Mostra-se permitido e conforme às garantias de defesa do arguido a consideração como provada da falta de manifestação de arrependimento sempre e quando, não constando a mesma do teor da douta acusação pública deduzida, não tenha sido comunicada a título de alteração não substancial dos factos".

Mas esta dimensão normativa, para além de não encontrar respaldo na decisão recorrida, também carece de normatividade.

Sobre esta questão afirma o acórdão recorrido:

“(…) O “arrependimento”, ou a ausência dele, enquanto postura íntima do arguido perante a prática de factos criminalmente relevantes, extraído de um conjunto complexo de atos do arguido, antes e durante o julgamento, só nessa altura poderá ser considerado, sendo a favor ou contra o arguido (…) a considerar no achamento da medida concreta da pena.

Os factos a que se refere o art. 358.º do Código de Processo Penal são exclusivamente os factos que relevam para os efeitos do art. 368º do Código de Processo Penal (descritos na acusação ou na pronúncia), e nunca aos factos relativos às condições pessoais e personalidade do arguido (…).

E o assentamento dos factos relativos à personalidade do arguido, porque assente na avaliação efetuada pelo tribunal da sua postura, não carece de ser comunicada para efeitos do contraditório (…)”.

Ou seja: o critério de decisão evidenciado no acórdão recorrido é o de que, para este efeito, não é aplicável o regime que decorre do artigo 358.º do CPP, porquanto o “arrependimento” do arguido, ou a sua ausência, apenas releva – e pode ser considerado – no momento do julgamento. Assim, também neste caso, a dimensão interpretativa impugnada se afasta do critério decisório aplicado no acórdão recorrido, comprometendo, com isso, a correspondência entre aquela e este, que é pressuposta pela utilidade do conhecimento do objeto do recurso.

Aliás, a interpretação normativa que o recorrente constrói demonstra que o mesmo...

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