Acórdão nº 508/21 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Julho de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução09 de Julho de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 508/2021

Processo n.º 1103/20

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., S.A., e são recorridas B. Limited e C., a primeira veio, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), interpor recurso do acórdão proferido por aquele Tribunal em 29 de outubro de 2020 que indeferiu a reclamação pela mesma apresentada do despacho proferido no mesmo Tribunal no dia 15 de julho de 2020, que por sua vez indeferiu a reclamação apresentada pela recorrente do despacho proferido no Tribunal da Relação do Porto em 30 de abril de 2020, que não admitiu o recurso de apelação do acórdão de 14 de janeiro de 2020.

Este acórdão, proferido no âmbito de um incidente de levantamento de sigilo bancário suscitado ela recorrente, autorizou o levantamento do sigilo bancário, na sequência de decisão proferida no Tribunal Judicial da Comarca do Porto de 17 de setembro de 2019, que considerou legítima, com fundamento em sigilo bancário, a recusa da ré, ora recorrente, em apresentar os documentos solicitados pelas autoras, ora recorridas, remetendo a decisão do incidente para o Tribunal da Relação do Porto.

2. A recorrente interpôs então recurso de constitucionalidade, com vista à fiscalização «das normas dos artigos 644.º, n.º 1, alínea a), e 671.º, n.º 1, do CPC, interpretadas e aplicadas no sentido de que a decisão de um Tribunal da Relação que se pronuncia sobre a quebra do sigilo bancário e ordena a junção de documentos (na sequência de uma decisão de um Tribunal de 1.ª instância que apenas afere da legitimidade da recusa ao abrigo do artigo 135.º, n.º 2, do CPP), não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, da qual é admissível recurso nos termos e para os efeitos do disposto nos referidos artigos do CPC». Considera a recorrente que tais normas «são inconstitucionais por violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da CRP, em articulação com o direito de reserva da vida privada, previsto no artigo 26.º da CRP».

3. Notificada para o efeito, a recorrente apresentou as suas alegações, concluindo nos seguintes termos:

«(...)

A. A questão de constitucionalidade normativa objeto do presente recurso consiste na interpretação normativa segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação, que se pronuncia sobre a quebra do sigilo bancário, na sequência de uma decisão da 1.ª instância que afere da legitimidade da recusa ao abrigo do artigo 135.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não constitui uma decisão proferida em 1.ª instância, para efeitos do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), e 671.º, n.º 1, do CPC – cf. ponto 1, supra, das presentes alegações.

B. Já depois de interposto o presente recurso, foi proferido, pela 2.ª Secção do Tribunal Constitucional (Processo n.º 661/19) o Acórdão n.º 740/2020, que incide sobre as mesmas normas que são objeto do presente recurso, tendo decidido não ser inconstitucional a interpretação normativa segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia sobre a quebra do sigilo bancário por parte de pessoa coletiva, na sequência de uma decisão de primeira instância que afere da legitimidade da escusa ao abrigo do artigo 135.º, n.º 2, do CPP, não constitui uma decisão proferida em primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, nem decisão proferida sobre decisão da primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC – cf. ponto 2, supra, das presentes alegações.

C. A decisão em causa não pode e não deve ser levada em conta na decisão do presente recurso, pois, para além de implicar um gravíssimo retrocesso da jurisprudência contida nos Acórdãos n.ºs 40/2008, 44/2008 e 197/2009, a mesma configura um verdadeiro recurso de amparo à rebours, isto é, uma decisão em que as ponderações relativas ao caso concreto não servem para proteger direitos fundamentais, mas antes para diminuir a respetiva proteção – cf. ponto 4, supra, das presentes alegações.

D. Os parâmetros à luz dos quais importa avaliar a questão de constitucionalidade objeto do presente recurso consistem no direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da Constituição, em articulação com o direito de reserva da vida privada, previsto no artigo 26.º da Constituição – cf. pontos 5, 6 e 7, supra, das presentes alegações.

E. A necessária articulação, na perspetiva de um direito constitucional ao recurso, entre o artigo 20.º e outras disposições constitucionais respeitantes aos direitos fundamentais, é, desde logo, ilustrada pelo caso do direito ao recurso no âmbito do processo penal, envolvendo a conjugação do referido artigo 20.º com os artigos 27.º, 28.º e, em especial, 32.º, n.º 1, todos da Constituição – cf. pontos 9, 13 e 14, supra, destas alegações.

F. De acordo com o entendimento vertido nos Acórdãos n.º 40/2008, n.º 44/2008 e n.º 197/2009 se uma decisão judicial afetar em primeira linha um direito, liberdade e garantia, deve caber recurso judicial dessa decisão; pelo contrário, se a decisão que afetar em primeira linha a posição protegida pelos direitos, liberdades e garantias não for uma decisão judicial, mas da administração, ou mesmo de um particular, o direito de acesso à justiça e aos tribunais é satisfeito através de um direito de impugnação judicial de tal decisão – cf. ponto 15, supra, das presentes alegações.

G. Caso um direito fundamental seja diretamente afetado, em primeira linha, por uma decisão judicial, a exigência de recurso dessa decisão decorre também das características próprias do nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade, pois não existindo recurso direto de constitucionalidade contra decisões judiciais que afetem direitos fundamentais deverá, ao menos, ser assegurado um recurso judicial que permita uma reapreciação do caso – cf. pontos 16 e 17, supra, das presentes alegações.

H. O âmbito de proteção do direito à reserva da vida privada abrange o segredo bancário, não apenas no que toca aos clientes da instituição de crédito, mas também à própria instituição, como teve oportunidade de decidir o Tribunal Constitucional, através designadamente do seu Acórdão n.º 517/2015 – cf. pontos 18 e 19, supra, das presentes alegações.

I. A decisão do Tribunal da Relação que, nos termos da lei, se pronuncia sobre a quebra do sigilo bancário, constitui a primeira decisão sobre a matéria, sendo inequívoco que decide o incidente de escusa de prestação de depoimento com base em sigilo profissional (cf. artigo 135.º, n.º 3, do CPP), como de resto o tribunal a quo não deixa de reconhecer expressamente – cf. ponto 20, supra, das presentes alegações.

J. Tal decisão envolve uma afetação do direito à reserva da vida privada, quer da instituição de crédito, quer dos seus clientes e, nessa medida, a mesma deve poder ser objeto de reapreciação em sede de recurso, na linha da jurisprudência formada no Tribunal Constitucional, pelo menos a partir do Acórdão n.º 40/2008 – cf. ponto 20, supra, das presentes alegações.

K. Sendo a decisão do Tribunal da Relação a primeira decisão judicial sobre a quebra de sigilo bancário e envolvendo uma afetação do direito à reserva da vida privada, a mesma não pode deixar de ser qualificada como decisão de primeira instância para efeitos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto nos artigos 641.º, n.º 1, alínea a), e 671.º, n.º 1, do CPC, sendo inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais conjugado com a violação do direito à reserva da vida privada qualquer interpretação contrária da citada disposição – cf. ponto, supra 20, das presentes alegações.

L. Não está em causa defender o caráter absoluto do sigilo bancário, mas tão somente sustentar que o direito à reserva da vida privada, conjugado com o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, impõe a existência de um direito ao recurso das decisões judiciais que se pronunciem, em primeira linha, sobre a dispensa do segredo bancário – cf. ponto 22, supra, das presentes alegações.

M. Ao afirmar, em relação ao disposto no artigo 135.º do CPP, que «não nos encontramos, de facto, perante uma simples decisão em primeira instância do Tribunal da Relação», o Acórdão n.º 740/2020 contraria a leitura que a própria decisão recorrida faz do direito ordinário, pois aí afirma-se que «[o] incidente foi suscitado na primeira instância e decidido no Tribunal da Relação do Porto», o que significa que, embora sustente que a decisão do Tribunal da Relação não pode ser considerada como uma decisão em primeira instância para efeitos do recurso ao abrigo do artigo 671.º do CPC, o Tribunal a quo não põe em causa que aquela decisão é uma decisão em primeira linha sobre a quebra do sigilo bancário – cf. ponto 26, supra, das presentes alegações.

N. O Acórdão n.º 740/2020, que decide a questão de constitucionalidade objeto dos presentes autos em sentido contrário ao aqui preconizado é merecedor de censura sob, pelo menos, três aspetos:

(i) Tal decisão significa um gravíssimo retrocesso na jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria quer do direito ao recurso, contida nos Acórdãos nºs 40/2008, 44/2008 e 197/2009, quer da inclusão do sigilo bancário na tutela constitucional da reserva da vida privada, contida nos Acórdãos n.ºs 442/2007, 145/2014 e 517/2015 – cf. pontos 24, 25, 26 e 27, supra, das presentes alegações;

(ii) O Acórdão em causa interpreta a Constituição à...

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