Acórdão nº 474/21 de Tribunal Constitucional (Port, 29 de Junho de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução29 de Junho de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 474 /2021

Processo n.º 792/2019

Plenário

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Um grupo de 86 deputados à Assembleia da República, dos Grupos Parlamentares do Partido Social Democrata (PSD), do CDS-Partido Popular (CDS-PP) e do Partido Socialista (PS), veio requerer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, relativa ao direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Os requerentes alegam que estas normas violam, quer as disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 43.º e do n.º 2 do artigo 18.º, quer as dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), todos da Constituição.

2. O pedido repousa nos seguintes fundamentos:

«I. Introdução

1. O direito ao reconhecimento da identidade de género não é uma inovação introduzida no ordenamento jurídico nacional pela Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto.

2. A mencionada lei veio, de facto, revogar a Lei n.º 7/2011, de 15 de março, que pela primeira vez criou em Portugal o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil.

3. Sucede que, segundo recomendações constantes do Projeto de Investigação “A 'Lei de Identidade de Género': Impacto e Desafios da Inovação legal na Área do (Trans)Género", maio de 2016, promovido pelo ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, através do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS-IUL), em parceria com a Associação ILGA Portugal e a LLH — The Norwegian LGBT Association, o regime da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, careceria de aperfeiçoamento em dois aspetos: por um lado, o reconhecimento legal da identidade de género deveria deixar de depender de um diagnóstico clínico e, por outro lado, deveria poder ser efetuado antes da maioridade.

4. E, com efeito, a Lei n.º 38/2018 veio introduzir as propostas constantes no referido Projeto de Investigação, como se retira, designadamente, dos respetivos artigos 5.º (Modificações ao nível do corpo e das características sexuais da pessoa menor intersexo), 6.º (Legitimidade) e 8.º (Requerimento).

5. Sucede que a Lei n.º 38 /2018 não se limitou a introduzir modificações no sentido de tornar mais vincada a autodeterminação da pessoa em relação a sua identidade de género, a qual seria assim desligada de qualquer diagnóstico clínico, com o propósito de “garantir uma melhor separação entre as esferas clínica e legal, assegurando assim a autonomia e autodeterminação das pessoas trans no reconhecimento legal das suas identidades”.

6. Para além disso, a Lei n.º 38/2018 inclui ainda um artigo 12.º, sob a epígrafe “Educação e Ensino” que prevê um conjunto de normas sobre medidas no sistema educativo resultantes do regime agora adotado quanto a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e a proteção das características sexuais de cada pessoa.

7. O presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da inconstitucionalidade das normas do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018 não incide, importa desde já sublinhá-lo, sobre a configuração do direito à autodeterminação da identidade de género, mas tão somente sobre as medidas a adotar no plano da configuração do sistema educativo que o legislador se sentiu habilitado a extrair a partir do reconhecimento daquele direito.

8. Tais medidas envolvem, como se vai demonstrar, uma violação clara da liberdade de ensino e do princípio da determinabilidade da lei.

II. Objeto do presente pedido

9. A norma do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, tem o seguinte texto:

“1 — O Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, nomeadamente através do desenvolvimento de:

a) Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género, expressão de género e das características sexuais;

b) Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído à nascença;

c) Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género;

d) Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa.

2 — Os estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza pública ou privada, devem garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais.

3 — Os membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da educação adotam, no prazo máximo de 180 dias, as medidas administrativas necessárias para a implementação do disposto no n.º 1”.

10. A disposição legal que acaba de ser transcrita suscita dificuldades de interpretação assinaláveis, sendo, aliás, algumas de tais dificuldades diretamente relevantes para as questões de constitucionalidade suscitadas no presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva de todas as normas do artigo 12.º.

11. Em qualquer caso, a leitura que mais diretamente parece resultar dos vários elementos interpretativos a ter em conta é aquela segundo a qual o artigo 12.º estabelece uma distinção entre um dever de garantir a promoção do exercício do direito a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas, através da adoção de medidas no sistema educativo, e um dever de garantir o respeito das crianças e jovens que manifestem a identidade e expressão de género, bem como o respeito das suas características sexuais.

12. 0 primeiro dever — isto é, o dever de garantir a promoção do exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas — dirige-se diretamente ao Estado, que se desincumbe dele através da adoção das medidas no sistema educativo exemplificadas no artigo 12.º, n.º 1; o segundo dever, por seu turno — o dever de garantir o respeito das crianças e jovens que manifestem a sua identidade e expressão de género — dirige-se diretamente a todos os estabelecimentos de ensino e o seu conteúdo exprime-se na relação estabelecida entre tais estabelecimentos e os seus alunos.

13. Dito de outro modo, o dever a que se reporta o artigo 12.º, n. 1, tem como correlativo um direito a prestações do Estado; enquanto o dever a que alude o artigo 12.º n. 2, tem como correlativo direto o direito a autodeterminação da identidade de género, entendido como um direito de liberdade, na verdade como uma dimensão do direito ao desenvolvimento da personalidade (cf. artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, e artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38/2008).

14. Por esta razão, o dever de regulamentação a que se refere o n.º 3 do artigo 12.º dirige-se apenas às medidas previstas no n.º 1: apenas estas carecem da interposição dos poderes públicos no que toca à concretização do dever a que dizem respeito.

15. Sem prejuízo destas diferenças, ambos os deveres incidem sobre todos os estabelecimentos de ensino, públicos e privados.

16. Tal acontece em relação ao dever de respeito previsto no artigo 12.º, n.º 2, na medida em que a própria disposição legal em causa o prevê expressamente; mas acontece também em relação ao dever de promoção previsto no artigo 12.º, n.º 1, na medida em que a expressão «sistema educativo» abrange todos os estabelecimentos de ensino.

17. Trata-se, com efeito, de uma expressão com um sentido abrangente, como decorre com toda a clareza do disposto no artigo 1.º, n.º 3, da Lei n. 46/86, de-14 de outubro (Lei de Bases do Sistema Educativo), na redação em vigor. «O sistema educativo desenvolve-se segundo um conjunto organizado de estruturas c de ações diversificadas, por iniciativa e sob responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas».

18. O resultado da exposição anterior é muito simples: em virtude do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018 o Estado encontra-se obrigado a promover o exercício do direito a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito a proteção das características sexuais das pessoas, através da adoção de medidas no sistema educativo, que inclui os estabelecimentos de ensino privados.

19. Por outras palavras, os estabelecimentos de ensino privados não estão apenas obrigados a respeitar o exercício do direito de autodeterminação da identidade de género, como decorre do artigo 12.º, n.º 2, da Lei n.º 38/2018 e sempre resultaria, em qualquer caso, da respetiva compreensão como um direito fundamental, mas estão também obrigados a pôr em prática as medidas que o Estado venha a adotar para promover aquele mesmo direito.

20. Ora, se o direito da autodeterminação da identidade de género se encontra hoje amplamente reconhecido — veja-se, por exemplo, a...

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