Acórdão nº 445/21 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Junho de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução23 de Junho de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 445/2021

Processo n.º 749/2020

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. Interpõe o presente recurso o Exm.º Magistrado do Ministério Público (doravante o recorrente), com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), confrontado que foi com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de fls. 290/34, contendo uma decisão de recusa referida a determinada norma extraída do artigo 1842.º, n.º 2, alínea c), do Código Civil (CC). São as incidências processuais conducentes a esse recurso que seguidamente relataremos.

1.1. A. intentou contra B. e outros uma ação declarativa com processo comum, que correu os seus termos no Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira com o número 503/17.8T8VFX, pedindo o seu reconhecimento como filho de C. (e não de D.), bem como a retificação do assento de nascimento, eliminando-se o apelido “D1” e aditando-se o apelido “C1”.

1.1.1. Culminou tal processo, em primeira instância, na prolação de sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido, em síntese, por considerar verificada a exceção perentória da caducidade do direito de ação.

1.2. Desta decisão recorreu o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 11/07/2019, negou provimento ao recurso.

1.3. Ainda inconformado, o autor recorreu para o STJ, que, por acórdão de 05/05/2020 (a decisão de recusa referida em 1., supra), concedeu a revista e revogou o acórdão aí recorrido, determinando a prosseguimento do processo no tribunal de primeira instância. Consta dos fundamentos desta decisão, designadamente, o seguinte:

“[…]

II. O acórdão recorrido, confirmando a sentença do tribunal de 1.ª instância, negou procedência ao recurso do recorrente.

3. No caso dos autos, estamos perante um pedido complexo, composto por uma ação de impugnação da presunção de paternidade em relação ao marido da mãe, intentada pelo filho (artigos 1839.º, n.ºs 1 e 2, e 1842.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Civil) e por uma ação de investigação da paternidade contra o pretenso progenitor biológico (artigos 1869.º e 1817.º, n.º 1, ambos do Código Civil).

O objeto do presente recurso incidirá, como vimos, apenas sobre a ação de impugnação da paternidade, mais precisamente sobre a questão da constitucionalidade da norma que fixa os prazos quando o autor é o filho, a al. c) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil.

Esta ação visa possibilitar a correção de uma atribuição legal e automática de paternidade que se julgue não corresponder ao vínculo real de parentesco. O direito de propor esta ação é o único instrumento legalmente disponível para que o autor exercer os direitos fundamentais à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à identidade pessoal consagrados nos artigos 25.º, n.º 1, e 26º, n.º 1, da Constituição, na medida em que o conhecimento da ascendência biológica é um aspeto da personalidade individual e uma condição de gozo pleno daqueles direitos fundamentais.

[…]

Após as alterações introduzidas pela Lei n.º 14/2009, a maior parte das decisões do Tribunal Constitucional incidiu sobre a constitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º, que estabelece que a ação da impugnação da paternidade pode ser intentada pelo marido da mãe, no prazo de três anos, contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, (cf. Acórdãos n.ºs 446/2010, 39/2011, 449/2011, 634/2011 e 247/2013). Mas foi também fiscalizada a alínea b) do mesmo preceito, que atribui à mãe a possibilidade de intentar a ação de impugnação da paternidade dentro dos três anos posteriores ao nascimento do filho (Acórdão n.º 441/2013). Nestas decisões o Tribunal Constitucional decidiu não formular qualquer juízo de inconstitucionalidade sobre estas normas.

Entendemos, todavia, que os critérios para aferir a constitucionalidade das normas que estabelecem os prazos previstos para a impugnação da presunção de paternidade, pela mãe e pelo marido, não podem ser transpostos para a fiscalização da norma agora questionada, que diz respeito aos prazos de caducidade vigentes para o direito de ação do filho.

O filho, diferentemente do seu presumido pai e da sua mãe, não teve qualquer controlo sobre as circunstâncias em que foi concebido e em que nasceu, sendo o seu interesse no estabelecimento da filiação de acordo com a verdade biológica particularmente digno de tutela pela lei. A mãe tem um prazo objetivo de caducidade de três anos a contar de um momento certo – o nascimento – para repor a verdade biológica, pois normalmente tem conhecimento da paternidade logo durante a gestação e após o nascimento, ou pelo menos tem conhecimento da relação procriativa, controlando de algum modo a situação. O presumido pai tem também, como o filho, um prazo de três anos, mas de natureza subjetiva, que começa a correr só a partir do conhecimento de determinadas circunstâncias que indicam não ser ele o pai. Contudo, a situação de interesses aqui presente é muito distinta dos casos em que é o filho a impugnar a presunção. O marido da mãe, quando toma conhecimento de que afinal não é o progenitor biológico do seu presumido filho, está em condições de exercer, ou não, conforme entender, o direito de impugnar a paternidade, em virtude de a relação entre ele e o seu cônjuge, a mãe, ser uma relação de igualdade, dissolúvel por divórcio, e desprovida do constrangimento, e até da hierarquia, que muitas vezes existe, na nossa cultura, nas relações entre pais e filhos. É que o filho pode ter vivido, confiando na paternidade do marido da mãe, sobretudo quando este assumiu de facto esse papel no plano afetivo e social. O direito comparado tem-nos ensinado a importância de paralisar, por vezes, através do instituto do abuso do direito, as ações de impugnação de paternidade, propostas pelo presumido pai, tardiamente, após este ter criado no filho a expetativa de que era o seu pai e de aquele ter beneficiado da chamada posse de estado ou tratamento como filho e ter havido entre estes uma relação afetiva e social de filiação. Mesmo que não seja o caso, os constrangimentos familiares decorrentes de uma ação destas podem tolher a decisão do filho de impugnar a presunção, que com frequência só se sente livre para o fazer depois da morte dos intervenientes. A este propósito, note-se que, no caso sub judice, quer o presumido pai, quer o pretenso pai biológico já tinham falecido à data da propositura da ação.

Menor valia tem ainda, para a lei, o interesse do terceiro, que se arroga de ser o progenitor biológico da criança, em impugnar a presunção de paternidade. Mas da decisão do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 89/2019), que julgou conforme à Constituição esta norma, extraída do artigo 1841.º, n.º 1 (em conjugação com os artigos 1838.º e 1839.º, n.º 1), não se pode retirar qualquer ilação para a questão que agora nos ocupa. O Tribunal Constitucional julgou não inconstitucional a citada norma, na parte em que admite a impugnação da paternidade presumida, ao terceiro, que afirma ser o progenitor biológico, através do MP, e apenas se for reconhecida pelo tribunal a viabilidade da ação de impugnação da paternidade, sem incluir, na interpretação normativa fiscalizada, a questão do prazo de caducidade (Acórdão n.º 89/2019).

No caso vertente, a questão de constitucionalidade coloca-se em termos completamente distintos. No primeiro caso (Acórdão n.º 89/2019), a norma impugnada nega legitimidade ativa ao pretenso progenitor biológico para impugnar a paternidade do marido da mãe, a qual nem o presumido pai, nem a mãe e o filho pretenderam impugnar, e que, por isso, goza da estabilidade de ser vivida ou pelo menos pretendida por todos os membros de um determinado agregado familiar, importando, assim, proteger a paz e a privacidade desta família. No caso sub judice, é o próprio filho, o protagonista principal da relação de filiação, que pretende impugnar a paternidade presumida, por não corresponder à verdade biológica nem à verdade socioafetiva vivida, mas os prazos estabelecidos na lei vedam-lhe o exercício desse direito, bem como o exercício do correspondente direito a intentar uma ação de investigação contra o pretenso pai, para fazer coincidir a paternidade legal com a paternidade biológica e socioafetiva.

A lei civil não permite a impugnação da presunção da paternidade em regime de total abertura. O Tribunal Constitucional considerou, no citado acórdão, reportando-se genericamente à impugnação da presunção e não apenas à norma impugnada, que, «(…) ponderando que o vínculo jurídico que une pai e filho, no contexto de uma família constituída por meio do casamento – única hipótese que está em causa nas referidas normas legais –, tem normalmente subjacente uma relação socioafetiva que se apresenta, por si só, como um valor merecedor de proteção jurídica, quer no plano dos interesses individuais de cada um dos membros da família, quer no plano institucional e comunitário, a lei regula cuidadosamente a ação de impugnação da paternidade, cuja procedência tem o grave efeito de extinguir o descrito vínculo jurídico e afetar a estrutura familiar subjacente, que lhe dá razão de ser e sentido».

Ou seja, a razão de ser da constitucionalidade do regime reside na proteção dos vínculos afetivos e sociais nascidos dessa paternidade presumida que se pretende impugnar. Contudo, a questão não se colocará nos mesmos termos, nos casos em que aquilo que o impugnante pretende, in casu, o filho, é precisamente fazer coincidir a paternidade jurídica com a paternidade afetiva, que sempre existiu, segundo afirma – devendo ser admitido a fazer prova disso – em...

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