Acórdão nº 418/21 de Tribunal Constitucional (Port, 15 de Junho de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Fernando Vaz Ventura
Data da Resolução15 de Junho de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 418/2021

Processo n.º 1101/2020

Plenário

Relator: Conselheiro Fernando Ventura

Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, alterada por último pela Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro, doravante LTC), a organização de processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva, para apreciação pelo Plenário da constitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral as custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.

Alega o Requerente que tal norma foi julgada inconstitucional nos Acórdãos n.ºs 489/2020, 490/2020, 563/2020, 564/2020, 565/2020, 642/2020, 643/2020 e 644/2020, decisões transitadas em julgado.

2. O Presidente da Assembleia da República, notificado nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, ofereceu o merecimento dos autos.

3. Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

II. Fundamentação

4. A generalização do juízo de inconstitucionalidade tem por base mais de três decisões em sede de fiscalização concreta, que incidiram sobre a norma extraída do n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, com o sentido indicado pelo Requerente.

Essas decisões assentaram em fundamentação idêntica, proferida no Acórdão n.º 489/2020, cujo conteúdo foi reproduzido nos Acórdãos n.ºs 490/2020, 563/2020, 564/2020, 565/2020, 642/2020, 643/2020 e 644/2020 (bem como nos Acórdãos n.ºs 8/2021, 9/2021 e 10/2021), na qual foi ponderado o seguinte:

«5. O sentido normativo aqui questionado encontra-se contido no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, o qual comporta disciplina específica em matéria de proteção jurídica no âmbito do processo de insolvência.

A sua compreensão e alcance não dispensa, porém, a convocação de outros elementos do sistema normativo em que se enquadra, designadamente aqueles que definem a responsabilidade por custas no âmbito do processo de insolvência, na sua globalidade, abrangendo o processo principal e os seus incidentes, com destaque para o procedimento de exoneração. Importa, então, começar por atentar no enunciado do artigo 248.º e, bem assim, dos artigos 240.º, n.º 1, 303.º e 304.º, todos do CIRE com os quais se articula na dimensão problematizada no presente recurso.

«Artigo 240.º

Fiduciário

1. A remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor.

2. (...)»

«Artigo 248.º

Apoio judiciário

«1. O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.

2. Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.

3. Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais.

4. O benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono». [negrito aditado]

Artigo 303.º

Base da tributação

Para efeitos da tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão dos bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, liquidação do ativo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas da administração, ou incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e de quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado.

«Artigo 304.º

Responsabilidade pelas custas do processo

As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.»

6. O instituto da exoneração do passivo restante, cujo regime consta dos artigos 235.º a 248.º, constitui solução inovadora introduzida pelo CIRE, inspirada no modelo de fresh start, votado a proteger o «honest but unfortunate debtor», há muito consagrado no ordenamento dos Estados Unidos da América e que se mantém princípio retor do capítulo 7 do U.S. Bankruptcy Code. Tem subjacente o propósito de conjugar o interesse dos credores no ressarcimento com a atribuição aos devedores singulares de boa-fé da possibilidade de se libertarem das suas dívidas, propiciando a reeducação financeira do devedor e o combate ao sobre-endividamento, assegurando, do mesmo passo, a manutenção da capacidade produtiva, o regular funcionamento do tecido económico e a criação de riqueza, bens de interesse geral.

A medida assenta na concessão ao devedor de uma oportunidade de reabilitação financeira através da libertação do peso (total ou em parcial) do passivo acumulado, que se revelou incapaz de satisfazer, ultrapassado que seja um período alargado – cinco anos – durante o qual os seus rendimentos disponíveis são destinados ao pagamento dos credores. Assim decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o regime vigente:

«O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça...

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