Acórdão nº 1377/20.7T8TMR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 27 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelANA BACELAR
Data da Resolução27 de Abril de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora I.

RELATÓRIO (…)] impugnou judicialmente a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de cassação do título de condução n.º (…) de que é titular.

Enviados os autos aos serviços do Ministério Público de Tomar e remetidos a Juízo [Juízo Local Criminal de Tomar da Comarca de Santarém], foi-lhes atribuído o n.º 1377/20.7T8TMR.

Considerada desnecessária a audiência de julgamento, sem que tenha havido oposição, em 28 de dezembro de 2020 foi decidido: «(…) o Tribunal decide julgar totalmente improcedente o presente recurso de contraordenação e, em consequência, manter a decisão administrativa nos seus exatos termos.» Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]: «1. O processo enferma da falta de elementos necessários, tais como factos que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade, e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável.

  1. O que constitui uma violação do Código Penal aplicável ex vi do D.L. 433/82.

  2. A escolha da medida da pena, ou até o direito lato sensu, não deve ser pura matemática…; 4. O Tribunal Constitucional aplicando a Lei Fundamental, só pode concluir pela inconstitucionalidade material da lei, uma vez que o artigo 30.º, n.º 4 da CRP proíbe a perca de direitos, seja qual for a sua natureza, como efeito necessários de uma pena; 5. Verifica-se, que, para a vida profissional do ora recorrente, é imprescindível que tenha permanentemente a possibilidade de conduzir.

  3. A presente infração resultou apenas de negligência, não existindo em momento algum dolo ou culpa por parte do recorrente.

  4. A simples possibilidade de aplicação da presente sanção acessória, é já para o recorrente, uma medida pedagógica, capaz de satisfazer 8. Todas as necessidades de prevenção e reprovação que lhe estão inerentes; 9. Nunca poderá o arguido/recorrente ser condenado duplamente pelo cometimento do mesmo crime; 10. A douta sentença de que ora se recorre, deverá, no mínimo, ter efeito suspensivo, sujeita a regime probatório; 11. Destarte a dita sentença, pelas razões supra invocadas deverá ser revogada e substituída por outra que dê sem efeito a medida de cassação da carta de condução.

    V.Exas., contudo, farão JUSTIÇA!» O recurso foi admitido.

    Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]: «1. O regime da carta “por pontos”, com possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos – por efeito de condenações, concretas e sucessivas, em processos próprios, por crimes rodoviários – não é mais do que uma condição imposta pelo legislador para a atribuição/manutenção do título de condução, que é razoável e visa a proteção de um bem jurídico digno de tutela penal e constitucional: “Segurança Rodoviária”.

  5. No sistema da carta “por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativamente ao “bom comportamento rodoviário”, 3. O dito sistema, constituindo embora uma reação automática – ocorre como efeito da(s) infração(ões) cometidas, sem que, por si mesmo, assuma natureza sancionatória –, não isenta a administração de verificar se o titular do título de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar do mesmo.

  6. Neste sentido, o regime de cassação do título de condução decorrente do art.º 148.º do Código da Estrada não decorre qualquer automaticidade contrária aos princípios da adequação e proporcionalidade resultantes do art.º 30.º, n.º 4, da Constituição.

  7. A cassação do título de condução prevista no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c), 10, 11 e 12, do Código da Estrada aplicada ao arguido consubstancia, em relação à aplicação das injunções e condenações sofridas nos processos criminais referidos nos factos 1 e 8 dos factos provados, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e, em última ratio, por imperativos de segurança rodoviária.

  8. Deste modo, não violou o princípio constitucional ne bis in idem a cassação do título de condução do recorrente (tudo o que acima referimos é entendimento unânime na jurisprudência recentemente publicada – Ac. TRP de 09 de maio de 2018, recurso 644/16.9PTPRT-A.P1, in www.dgsi.pt; no Acórdão do TRP de 30-04-2019, no âmbito de recurso n.º 316/18.0T8CPV.P1, acessível em www.dgsi.pt; pelo Acórdão TRC de 08.05.2019, processo 797/18.1T8VIS.C1, disponível em www.gdsi.pt e AC. do TRC de 23-10-2019, processo 83/19.0T8OHP.C1; Ac. do TRE de 3-12-2019, processo 1525/19T9STB.E1).

    Nestes termos, e pelos fundamentos supra referidos, não deverá ser alterada a decisão recorrida, devendo ser julgado totalmente improcedente o recurso ora interposto pelo arguido.

    Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA» Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu o parecer que se transcreve: «(…) 3. Como se vê dos autos, foi instaurado processo para verificação dos pressupostos da cassação da carta de condução ao recorrente, em virtude de duas condenações judiciais pela prática de crimes de condução de veículo em estado de embriaguez que implicaram a perda total de pontos, nos termos do art. 148º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada (CE).

    O recorrente exerceu o direito de defesa, invocando entre o mais a inconstitucionalidade daquela norma, quando aplicada no sentido de ser fundamento bastante da cassação do título de condução a ocorrência da perda total de pontos.

    Ultimada a instrução, foi proferida decisão que, depois de apreciar a defesa apresentada, determinou a cassação da carta de condução do recorrente e a impossibilidade de concessão de novo título no prazo de dois anos.

    Irresignado, o ora recorrente impugnou judicialmente a decisão da ANSR, impugnação que foi julgada improcedente, tendo sido mantida a decisão da autoridade administrativa.

  9. Não se desconhece a jurisprudência citada na decisão recorrida e na resposta que na 1ª instância o Ministério Público ofereceu à motivação do recurso.

    Porém, porque o unanimismo não pode significar impedimento de pensar (ainda que, eventualmente, laborando em erro, tão legítimo quanto o não erro) e, também, o modo de fundamentadamente o expressar, a cassação da carta de condução é, no entendimento do signatário, uma medida de segurança de natureza administrativa cuja aplicação também tem como pressupostos gerais a prévia comissão de um delito e a perigosidade.

    Logo, como ensina FIGUEIREDO DIAS, convoca também o princípio da legalidade a desempenhar uma função garantística fundamentalmente idêntica à que desempenha relativamente às penas.

    Por isso, a cassação da licença de condução, enquanto medida de segurança, traduzir-se-á, num primeiro momento, na apreciação da personalidade do arguido, que se deverá concluir ser atreita à prática de factos dessa natureza, concluindo-se pela sua perigosidade, e, num segundo momento, através da análise do caso concreto, deverá concluir-se que ele foi consequência daquela propensão criminosa sendo, nessa medida, um índice dessa personalidade de perigosidade, vista a natureza do facto sua gravidade ou reiteração.

    Tornando a FIGUEIREDO DIAS, “Do que se trata, no direito das medidas de segurança, sob a epígrafe de perigosidade, é da comprovação, num momento dado, de uma probabilidade de repetição pelo agente, no futuro, de crimes de certa espécie. (…) não basta nunca a mera possibilidade de repetição pois que esta, em rigor, existe sempre; necessária é sempre uma possibilidade qualificada. (…) O perigo há-de pois ser um tal (…) que convalide a aplicação da medida de segurança em nome de um interesse público preponderante.

    (…) Numa palavra: perigosidade criminal capaz de justificar, face a exigências de estadualidade de direito, a aplicação de medidas de segurança só existe quando se verifique o fundado receio de que o agente possa vir a praticar factos da mesma espécie da do ilícito-típico que é pressuposto daquela aplicação. Exigência que deve valer em termos fundamentalmente idênticos para a aplicação de medidas de segurança de qualquer tipo (…). A qualificação, por esta via, da perigosidade relevante acaba, de resto, por revelar-se mais importante do que o mero requisito da gravidade, uma vez que a este já plenamente se ocorre, em rigor, através dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.” Como pondera o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.12.2016 4 , “sendo uma medida de segurança, a cassação só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente e nunca como uma mera consequência do cometimento de um determinado crime, sendo exigível a verificação em concreto de um de dois requisitos: ou de um particular receio de repetição de factos da mesma natureza ou que o agente deva ser considerado inapto para a condução de veículo com motor.

    (…) a aplicação da medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo com motor é sempre consequência de um comprovado estado de perigosidade do agente para a condução no futuro, não constituindo nunca consequência automática da prática de crime rodoviário, por mais grave e censurável que ele seja.” E, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.4.2015 5 , “É pressuposto de aplicação de toda e qualquer medida de segurança a perigosidade criminal do agente cuja aplicação está, em todo o caso, sujeita ao princípio da proporcionalidade, pelo que só pode ser aplicada quando se revelar adequada, necessária e proporcionada.

    A medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo com motor (…) consiste, basicamente, na invalidação, por cancelamento, da licença de condução de veículos motorizados de que o agente é titular e na proibição de obtenção de nova licença de qualquer categoria...

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