Acórdão nº 266/21 de Tribunal Constitucional (Port, 29 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução29 de Abril de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 266/2021

Processo n.º 1158/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., S.A. (o ora recorrente) impugnou, junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, uma decisão administrativa proferida pela Autoridade da Concorrência, no âmbito do processo de contraordenação n.º PRC/2012/9, pela qual aquela autoridade administrativa indeferiu um pedido do Banco recorrente, visado no processo, para estar presente nas inquirições de testemunhas arroladas por outros visadas.

1.1. O recurso foi julgado improcedente pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, por sentença de 11/07/2019, (processo n.º 225/15.4YUSTR-M).

1.1.1. Desta decisão recorreu a visada para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nas alegações de recurso suscitou, designadamente, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 25.º, n.os 4 e 5, do Novo Regime Jurídico da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio (Diploma doravante identificado pela sigla LdC), quando interpretados no sentido de que nem os visados nem os seus advogados têm de ser notificados para assistir e participar nas inquirições de testemunhas requeridas por um covisado após dedução da nota de ilicitude.

1.1.2. Por acórdão de 12/11/2019, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso. Assentou tal decisão nos fundamentos seguintes:

“[…]

II. Objeto do recurso.

Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, que condensam as razões da sua divergência com a decisão recorrida, as questões que importa apreciar e decidir traduzem-se em saber se deve ser reconhecido às covisadas o direito a assistir e participar nas inquirições das testemunhas arroladas pelas covisadas nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º 1, da LdC.

*

III. Fundamentação

III.1. Na decisão recorrida atendeu-se ao seguinte enquadramento fáctico;

a) o PRC 9/2012 teve origem num pedido de dispensa de coima apresentado em 26 de novembro de 2012, cuja abertura do processo visa um universo de quinze visadas, contando com 95.006 ficheiros informáticos, a que acresce um total de mais de centena e meia de volumes de processo;

b) no dia 28 de maio de 2015, a Autoridade da Concorrência proferiu nota de ilicitude, contando entre a prova indicada, um total de 1.124 documentos classificados como confidenciais;

c) a visada A. já apresentou pronúncia sobre a nota de ilicitude a 27 de setembro de 2017;

d) no dia 3 de abril de 2019, em resposta a ofício dirigido pela Autoridade da Concorrência, o Recorrente requereu ser notificado ‘da realização das novas diligências de inquirição de testemunhas das covisadas que se tenham pronunciado, como o A., nesse sentido, para que possa nelas estar presente, através dos seus mandatários’;

e) por ofício de 4 de abril de 2019, com a referência interna S-AdC/2019/1398, a Autoridade da Concorrência notificou o A.do agendamento da repetição das diligências de inquirição das testemunhas por si arroladas, para efeitos da presença dos seus mandatários;

f) e por ofício com a referência interna S-AdC/2019/1482, de 8 de abril de 2019, a Autoridade da Concorrência indeferiu o pedido do A. de notificação para participação dos seus mandatários nas inquirições de testemunhas arroladas pelos outros visados no mesmo processo de contraordenação.

*

Importa ainda considerar que por sentença de 08.04.2018, confirmada por Acórdão desta Relação de 20.02.2019 foi julgada procedente a impugnação judicial da decisão interlocutória da Medida da Autoridade da Concorrência, que tinha indeferido requerimento da Visada B.. S.A. no sentido de que os seus Advogados assistissem à inquirição das testemunhas por si arroladas na defesa escrita apresentada na sequência da dedução da nota de ilicitude, declarando a nulidade da decisão administrativa e determinando a repetição da inquirição das testemunhas arroladas pela referida visada.

*

III.2. O direito

O Direito das contraordenações é um ramo do Direito Público situado entre o Direito Administrativo (que constitui a matriz do ilícito e de parte do processo de contraordenação) e o Direito Penal (do qual importa alguns princípios, regras de imputação e garantias de defesa).

Embora a natureza do ilícito seja essencialmente administrativa, dado que assenta na tutela de interesses e na violação de deveres de ordem administrativa, e a competência sancionatória caiba a autoridades administrativas, no âmbito de um processo administrativo especial, trata-se de uma modalidade de Direito punitivo cuja intervenção se traduz [em restrições], por vezes gravosas, de direitos patrimoniais e de liberdades económicas.

Nessa medida, convoca a aplicação de princípios constitucionais – como o direito de audiência e defesa (cf. artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa e 50.º do RGCO) – [e] de outros do domínio penal – designadamente quanto aos elementos constitutivos da prática de tipos de ilícito contraordenacional, quer ainda quanto à própria tramitação perante os tribunais competentes para aferir da sua impugnação – ligação que explica que o Código Penal e o Código de Processo Penal possam funcionar como direito subsidiário (cf. os artigos 32.º e 41.º do RGCO).

Tendo em consideração que o direito das contraordenações surge tradicionalmente ligado às bagatelas penais e aos ilícitos a que se associa uma neutralidade axiológica, a ligação do direito da concorrência ao direito penal e ao direito processual penal deverá ser bastante próxima, na justa medida em que constitui uma das principais incumbências do Estado garantir a livre concorrência, afetando as regras da concorrência transversalmente os interesses gerais dos agentes económicos, e fazendo eco disso mesmo, a gravidade das sanções aplicáveis às infrações jusconcorrenciais.

Nesse sentido, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem vindo a confirmar a aplicação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem referente a um processo justo e equitativo, em processos jusconcorrenciais sancionatórios.

Porém, importa não olvidar as especificidades do processo contraordenacional, que permitem, designadamente, a concentração na mesma entidade dos poderes de regulação, investigação, acusação e sancionatório.

E, em atenção a tais especificidades, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado a não aplicação direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal, desde logo, o princípio da judicialização da instrução consagrado no n.º 4 do artigo 32.º.

No caso dos autos, o Recorrente insurge-se contra a decisão recorrida por entender deve aplicar-se a norma prevista no artigo 289.º do Código de Processo Penal [ [1] ] para a inquirição de testemunhas em fase de instrução, por via do disposto nos artigos 13.º da LdC e 47.º, n.º 1, do RGCO.

Mas não lhe assiste razão.

Na verdade, como se referiu na decisão recorrida, a fase em que a questão foi suscitada não é equivalente à da instrução em processo penal, pese embora a coincidência terminológica.

Tendo a Autoridade da Concorrência elaborado e notificado os Visados da nota de ilicitude, importa ter presente que esta peça tem a finalidade de possibilitar ao Visado uma última e cabal oportunidade de defesa antes de ser proferida a decisão final.

Como se decidiu no Assento do STJ 1/2003, de 25 de janeiro, a nota de ilicitude deve fornecer os elementos necessários para que o infrator fique a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão nas matérias de facto e de direito.

Mas não equivale à notificação da acusação, pois não constitui a decisão final da autoridade administrativa – esta é que, uma vez impugnada judicialmente e remetida ao juiz pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 62.º do RGCO, será convolada em acusação, tendo por base a decisão final da autoridade administrativa, impugnada pelo arguido e ‘apreciada’ pelo Ministério Público.

Por outro lado, a acusação em processo penal pressupõe e exige o exercício prévio pelo arguido dos direitos de audição e defesa, o que não sucede obrigatoriamente no processo contraordenacional antes da notificação da nota de ilicitude.

O artigo 25.º da LdC ocupa-se, pois, da segunda fase do procedimento sancionatório, que se inicia com a notificação da nota de ilicitude (cf. artigo 24.º, n.º 3, al. a), da LdC), concretizando o direito de defesa do visado a ser ouvido, a pronunciar-se sobre as questões que possam interessar à decisão do processo e sobre as provas produzidas bem como a requerer diligências complementares de prova que considere convenientes para a sua defesa, tudo em conformidade com o artigo 50.º do RGCO e 32.º, n.º 10, da CRP.

Entendeu-se no já citado Acórdão desta Relação de 20.02.2019, proferido no apenso G, que ‘o exercício do contraditório e o exercício do direito à prova implicam que o Visado, que arrolou as testemunhas, as possa inquirir e contrainquirir, produzindo a sua prova, constituindo a presença do Visado no ato de inquirição das testemunhas arroladas uma dimensão essencial do exercício do contraditório’.

Compreende-se com facilidade que o exercício do contraditório e do direito à prova implicam que o visado que arrolou as testemunhas e que tem, portanto, a noção dos factos que pretende demonstrar com os respetivos depoimentos, as possa inquirir e contrainquirir, produzindo a sua prova, constituindo a presença do Visado no ato de inquirição das testemunhas arroladas uma dimensão essencial do exercício do contraditório – as diligências de prova, quando requeridas pela visada, são a materialização do direito de audição e defesa.

Tal ordem de razões,...

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