Acórdão nº 172/21 de Tribunal Constitucional (Port, 24 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução24 de Março de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 172/2021

Processo n.º 541/2020

Plenário

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio requerer, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (“Lei do Tribunal Constitucional”), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da «norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial».

Como fundamento, o requerente alega que tal norma já foi julgada inconstitucional em três casos concretos pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente pelo Acórdão n.º 338/2018, já transitado em julgado, e bem assim, pelas Decisões Sumárias n.ºs 75/2020 e 76/2020, igualmente transitadas em julgado.

2. Notificado para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.

3. Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

II. Fundamentação

4. De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, que determina pertencer a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, previsto naquela Lei.

O presente pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado pelo Ministério Público tem por base em três decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade.

Com efeito, o Acórdão n.º 338/2018 julgou inconstitucional a «norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial». Tal julgamento foi reafirmado pelas Decisões Sumárias n.º 75/2020 e 76/2020.

Encontram-se, por conseguinte, reunidas as condições indispensáveis à apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, nos termos da Constituição e da Lei do Tribunal Constitucional.

5. A norma que constitui o objeto do pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade integra o n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, que aprova o regime sancionatório aplicável às contraordenações ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagem, cuja redação é a seguinte:

Artigo 10.º

Responsabilidade pelo pagamento

1 - Sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da contraordenação, as concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens, consoante os casos, notificam o titular do documento de identificação do veículo para que este, no prazo de 30 dias úteis, proceda a essa identificação ou pague voluntariamente o valor da taxa de portagem e os custos administrativos associados.

2 - A identificação referida no número anterior deve, sob pena de não produzir efeitos, indicar, cumulativamente:

a) Nome completo;

b) Residência completa;

c) Número de identificação fiscal, salvo se se tratar de cidadão estrangeiro que o não tenha, caso em que deverá ser indicado o número da carta de condução.

3 - Na falta de cumprimento do disposto nos números anteriores, é responsável pelo pagamento das coimas a aplicar, das taxas de portagem e dos custos administrativos em dívida, consoante os casos, o proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime de locação financeira ou o detentor do veículo.

4 - Quando, nos termos do n.º 1, seja identificado o agente da contraordenação, é este notificado para, no prazo de 30 dias úteis, proceder ao pagamento da taxa de portagem e dos custos administrativos associados.

5 - Caso o agente da contraordenação não proceda ao pagamento referido no número anterior, é lavrado auto de notícia, aplicando-se o disposto no artigo 9.º da presente lei e extraída, pelas entidades referidas no n.º 1 do artigo 11.º, a certidão de dívida composta pelas taxas de portagem e custos administrativos associados correspondentes a cada mês, que são remetidos à entidade competente.

6 - O direito de ilidir a presunção de responsabilidade prevista no n.º 3, considera-se definitivamente precludido caso não seja exercido no prazo referido no n.º 1.

Nos três casos concretos que suportam o pedido de generalização, a norma extraída do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, foi julgada inconstitucional com o específico sentido normativo com que foi desaplicada nas sentenças recorridas, isto é, no sentido de estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial.

Ou seja, nas sentenças recorridas não se julgou inconstitucional a referida norma no sentido de estabelecer uma presunção inilidível anterior ou concomitante ao levantamento de auto de notícia, cuja validade nem sequer é questionada, mas apenas no que toca à atuação da presunção legal em sede de impugnação judicial da decisão administrativa de condenação pela prática da contraordenação. Os tribunais recorridos consideraram que a norma impugnada os impede de relevar qualquer prova sobre a autoria dos factos ou, em caso de dúvida, fazer atuar o princípio in dubio pro reo. É, pois, no contexto de um processo judicial que o tribunal recorrido desaplica a norma por inconstitucionalidade, considerando que nesse processo a arguida deve ser admitida a ilidir a presunção.

6. A norma do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, foi desaplicada nos casos concretos que legitimam o pedido de generalização do juízo de inconstitucionalidade com fundamento na violação de três parâmetros constitucionais:

(i) o princípio da culpa, implícito na subordinação da lei à dignidade humana, na medida em que impõe uma responsabilidade objetiva, inilidível, em matéria sancionatória;

(ii) o princípio do direito de defesa em processo contraordenacional, na medida em que não permite ao arguido provar a autoria efetiva dos factos;

(iii) e o princípio de presunção de inocência, porque não permite ao Tribunal atuar o princípio in dubio pro reo.

Estando em causa garantias constitucionais em matéria de contraordenações, importa começar por analisar os traços gerais da jurisprudência constitucional sobre o assunto.

Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que as garantias constitucionais previstas no artigo 32.º da CRP se aplicam no domínio das contraordenações com algumas adaptações. Neste sentido, tem-se considerado que o legislador dispõe de uma margem de apreciação mais ampla no âmbito das contraordenações.

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, começou por se afirmar que «hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal” [...]. Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridade administrativa, com o sentido dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas coletivas e adotar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade».

Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n.ºs 158/92, 344/93, 469/97, 461/2011, 537/2011, 45/2014, 180/2014). E com fundamento na diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções, tem considerado que os princípios constitucionais com...

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