Acórdão nº 176/21 de Tribunal Constitucional (Port, 06 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Maria de Fátima Mata-Mouros
Data da Resolução06 de Abril de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 176/2021

Processo n.º 941/2019

1.ª Secção

Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros

Acordam, na 1.ª Secção, do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, em que é recorrente Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e são recorridos A. e Banco B., S.A., foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada por LTC), do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que, mantendo a decisão do relator, julgou improcedente a reclamação do despacho, proferido no Tribunal da Relação do Porto, de não admissão do recurso interposto pela CMVM do acórdão proferido por aquele Tribunal, no âmbito do incidente de escusa em decorrência de sigilo profissional. Nesse acórdão, o Tribunal da Relação do Porto decidiu dispensar a Reclamante do cumprimento do dever de sigilo relativamente à apresentação de certos documentos.

Os autos prosseguiram para alegações quanto à interpretação normativa extraída do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, segundo a qual não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão proferida pelo Tribunal da Relação no âmbito do incidente sobre a quebra do sigilo profissional.

2. A recorrente produziu alegações, apresentando as conclusões que aqui se reproduzem:

«V. Conclusões

A. Na sequência da interposição do presente recurso para o Tribunal Constitucional, o mesmo foi admitido, pelo Supremo Tribunal de Justiça, por despacho datado de 02.10.2019, fixando-se que o recurso teria efeito meramente devolutivo.

B. Porém, deve ser fixado efeito suspensivo ao recurso interposto pela CMVM do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, assim se alterando, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, os efeitos de recurso fixados na decisão de admissão de recurso (datada de 02.10.2019), proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.

C. Com efeito, caso o recurso tivesse efeito meramente devolutivo, a decisão seria passível de execução imediata e a CMVM teria que apresentar os elementos em relação aos quais foi determinada a quebra, assim revelando a informação sujeita a segredo profissional e o recurso não teria, pois, qualquer efeito útil.

D. Não obstante se entender que a Decisão recorrida versa sobre interesses imateriais, e que não lhe seriam aplicáveis os requisitos previstos no artigo 647.º n.º 4 do CPC, maxime os atinentes à necessidade de prestação de caução, a CMVM oferece-se para prestar caução.

E. A CMVM foi notificada da conta de custas n.º 142/2020, no valor de €612,00.

F. Sucede que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 29.º do Regulamento das Custas Processuais, a conta de custas é elaborada pela secretaria do tribunal no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão final.

G. Nos presentes autos ainda não foi proferida decisão final, o que tudo conduz à conclusão de que a conta elaborada nos presentes autos é intempestiva, por prematura em face da fase processual em que os autos se encontram e atento o disposto no n.º 1 do artigo 29.º do Regulamento das Custas Processuais.

H. Não estando a conta notificada à Recorrente em harmonia com o artigo 29.º n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais, deve a mesma ser reformada em conformidade, dando-se sem efeito a conta elaborada e notificada à Recorrente.

I. O Tribunal da Relação do Porto proferiu uma decisão, em 1.ª instância, de quebra do segredo profissional da CMVM (entidade sujeita a segredo profissional, nos termos do disposto no artigo 354.º do Código dos Valores Mobiliários e no artigo 14.º da Lei-Quadro das Entidades Reguladoras), ao abrigo do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135.º do Código de Processo Penal.

J. Tendo a CMVM interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, o Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso interposto pela CMVM, sustentando, em síntese, que a decisão não é recorrível, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 671.º do CPC.

K. Por Decisão Sumária n.º 80/2020, a Exma. Juíza Conselheira Relatora decidiu que constituirá objeto da questão da constitucionalidade a conhecer nos presentes autos a seguinte: “interpretação normativa, extraída do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, segundo a qual não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão proferida pelo Tribunal da Relação no âmbito do incidente sobre a quebra do sigilo profissional”.

L. O dever de segredo (ou de sigilo) profissional da CMVM, previsto no artigo 354.º do CdVM e no artigo 14.º da Lei-Quadro das Entidades Reguladoras, impõe-se aos titulares dos órgãos das entidades reguladoras, ao seu pessoal, aos respetivos prestadores de serviço e colaboradores, relativamente a todos os assuntos que lhe sejam confiados ou de que tenham conhecimento por causa do exercício das suas funções, e aplica-se transversalmente a todas as entidades administrativas independentes, qualquer que seja a área da economia objeto de regulação, visando, em primeira linha, assegurar a confiança dos regulados e supervisionados e, bem assim, a eficácia da supervisão.

M. A imposição à CMVM, enquanto entidade de supervisão do mercado de instrumentos financeiros, de um dever de segredo profissional assume-se também como a transposição para o direito interno português de várias normas que, no quadro da regulação europeia do mercado de instrumentos financeiros, impõem aos Estados-membros da União Europeia que as respetivas autoridades de supervisão fiquem sujeitas a uma obrigação de guardar segredo profissional (cfr. artigo 76.º da Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, artigo 25.º da Diretiva 2004/109/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de dezembro de 2004, bem como, por aplicação direta, o artigo 27.º do Regulamento (UE) n.º 596/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014 e o artigo 35.º do Regulamento (UE) 2017/1129 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017).

N. A relevância do segredo profissional das autoridades de supervisão do mercado de instrumentos financeiros está bem evidenciada nos acordos de cooperação internacional entre as diferentes autoridades de supervisão, que impõem um dever de confidencialidade para a troca das informações (assim veja-se o artigo 11.º do Multilateral Memorandum of Understanding Concerning Consultation and Cooperation and the Exchange of Information da IOSCO e o artigo 7.º do Multilateral Memorandum of Understanding on Cooperation Arrangements and Exchange of Information da ESMA).

O. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a propósito do artigo 54.º da Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004 (que o artigo 354.º do CdVM transpõe para a ordem jurídica interna), referiu já precisamente que “[o] funcionamento eficaz do sistema de controlo da atividade das empresas de investimento, baseado numa supervisão exercida no interior de um Estado-Membro e na troca de informações entre as autoridades competentes de vários Estados-Membros, tal como foi sucintamente descrito nos números anteriores, requer que tanto as empresas controladas como as autoridades competentes possam estar seguras de que as informações confidenciais fornecidas conservarão, em princípio, o seu caráter confidencial (v., por analogia, acórdão Hillenius, 110/84, EU:C:1985:495, n.° 27)” (Acórdão do TJUE proferido no Processo C-140/13).

P. Tendo em conta as atribuições de supervisão da CMVM (cf. artigo 353.º do CdVM) e as entidades sujeitas à sua supervisão (cf. artigo 359.º do CdVM), tal segredo profissional abrange factos ou elementos que se encontram sujeitos a diferentes tipos de segredo: (i) ao segredo bancário, (ii) ao segredo empresarial, e (iii) ao segredo das próprias autoridades supervisoras, o dito segredo «prudencial», imposto à autoridade supervisora do setor financeiro e às pessoas que aí trabalham.

Q. Desde logo, o segredo profissional da CMVM pode abranger factos ou elementos que se encontram sujeitos a segredo bancário (o qual, nos termos do disposto nos artigos 361.º, n.º 2, al. a) do CdVM e 79.º, n.º 2, al. b), do RGICSF, não é oponível à CMVM): é o caso da informação recolhida pela CMVM junto, por exemplo, dos intermediários financeiros (instituições de crédito ou empresas de investimento).

R. Mas o segredo profissional da CMVM pode também abranger factos ou elementos que, não estando sujeitos a segredo bancário, ainda assim se encontram sujeitos a segredo comercial, industrial ou da vida interna das empresas ou a segredo de supervisão em sentido estrito: pode ser o caso da informação recolhida pela CMVM, por exemplo, junto de emitentes de valores mobiliários ou de investidores qualificados (que não se encontrem sujeitos a segredo bancário).

S. O segredo das próprias autoridades supervisoras inclui, nomeadamente, os métodos de supervisão aplicados pelas autoridades competentes, as comunicações e as transmissões de informações entre as diferentes autoridades competentes, bem como entre estas e as entidades sujeitas à supervisão, e qualquer outra informação não pública sobre o estado dos mercados sujeitos à supervisão e as transações nele realizadas.

T. “O segredo profissional da CMVM protege (i) a reserva da intimidade da vida privada de todas as pessoas sujeitas a supervisão da CMVM e bem assim de todos aqueles que, de alguma forma, se relacionam com entidades supervisionadas pela CMVM (designadamente, clientes das mesmas), (ii) os segredos comerciais, industriais ou da vida interna das empresas supervisionadas pela CMVM, e (iii) a eficácia da supervisão dos mercados de instrumentos financeiros” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no...

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