Acórdão nº 01894/17.6BEBRG de Tribunal Central Administrativo Norte, 19 de Março de 2021

Magistrado ResponsávelMaria Fernanda Antunes Apar
Data da Resolução19 de Março de 2021
EmissorTribunal Central Administrativo Norte

Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:*RELATÓRIO H., S.A, com sede na Rua (…), instaurou acção administrativa contra o Município de (...), sito na Avenida (…), pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização no valor das taxas integralmente pagas, de €315.719,98, acrescido de juros de mora, desde 04/07/2017, até efectivo e integral pagamento.

Por sentença proferida pelo TAF de Braga foi julgada a acção parcialmente procedente e condenado o Réu no pagamento à Autora, de uma indemnização no montante de €315.719,98, acrescido de juros de mora, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Desta vem interposto recurso.

Alegando, o Réu formulou as seguintes conclusões: I - Vem o presente recurso interposto da sentença final, que julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou o Réu no pagamento à Autora, de uma indemnização no valor de €315.719,98, à qual acrescem juros de mora, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

II - A Autora configurou a presente acção de responsabilidade civil extra-contratual do Município Réu, resultante do exercício da actividade administrativa, alegando como acto ilícito eventualmente gerador de responsabilidade a decisão do Senhor Presidente da Câmara do Município Réu, de 6 de Outubro de 2006, deferindo o projecto de arquitectura, no processo de licenciamento nº 409/PC/06, com a emissão, em 19 de Março de 2007, do respectivo alvará de licença de construção número 133/07, autorizando 6 pisos acima e 2 abaixo da soleira, em nome de “P., Limitada”.

III - O cerne do presente recurso é precisamente o de saber se o referido acto licenciador, declarado nulo, consubstancia ou não um facto ilícito, culposo, gerador de danos na esfera jurídica da Autora e se existe ou não nexo de causalidade entre o facto e o dano que a Autora peticiona, de valor igual ao da taxação paga pelo novo licenciamento/legalização das obras inicialmente licenciadas por acto nulo, entretanto caducado, em consequência da declaração de insolvência da titular inicial do processo de licenciamento.

IV - O Município Réu ora recorrente concorda com o regime legal aplicável ao caso dos autos, sumariado na sentença recorrida: artigo 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP), DL nº 48051, de 21 de Novembro de 1967 (RCEEP), e do Código Civil, no que este último seja omisso, bem como o artigo 70º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), na redacção em vigor em 6 de Outubro de 2006, ou seja na redacção originária do DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, artigo este que configura um regime especial em matéria urbanística, convivente como o regime geral, que se aplica em tudo o que não se mostre previsto no regime especial.

V - Atenta a matéria de facto provada, a nossa discordância com a sentença recorrida tem a ver com a sua errada subsunção jurídica, quanto à verificação da ilicitude do facto, o acto licenciador de 6 de Outubro de 2006, da culpa, do dano e do nexo causalidade.

VI - A sentença recorrida reconhece que “a simples prática de um ato administrativo ilegal não importa, automaticamente, a respectiva ilicitude, pois impõe-se que da actuação que viole disposições legais resulte, igualmente, a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos”, assim aderindo à Jurisprudência recente do Acórdão do STA, de 7/11/2019, processo nº 01457/04.6BESNT, entendendo, porém, à sua revelia, que o acto licenciador do Réu, de 6 de Outubro de 2006, não só foi ilegal, como também ilícito.

VII - Como resulta do sumário do acórdão do STA supra referido, “a ilicitude não se confunde com a mera ilegalidade, pois esta, para configurar aquela, deverá traduzir-se na violação de direitos subjectivos do lesado ou, pelo menos, de interesses seus que a norma violada também visava proteger”, pelo que a violação dos direitos do lesado aconteceriam sempre na esfera jurídica do titular originário do processo, houvesse ou não, depois do acto, a transmissão desse direito, para terreiros, por título legítimo.

VIII - De referir ainda que a licença especial para concluir obras inacabadas, de acordo com o regime previsto no nº 1 do artigo 88º do RJUE, não consubstancia a renovação de licença caducada, conclusão que nos é facultada pelo próprio texto legal, tratando-se, assim, da concessão, ex-novo, de uma licença especial, para acabar obras inacabadas, antes executadas na vigência de alvará caducado.

IX - A caducidade importou a extinção, ex-nunc, do licenciamento, que não se renovou por via da emissão da licença especial para o acabamento da obra, razão por que, em bom rigor, não se poderia sequer extinguir, ex-tunc, o acto licenciador, por via da declaração de nulidade.

X - Importará averiguar quais foram os direitos ou interesses legalmente protegidos da titular inicial do processo de licenciamento violados com a prolação, pelo Município Réu, em 6 de Outubro de 2006, do acto licenciador ilegal, que caducou por causa da sua declaração de insolvência, depois transmitidos à Autora, por via da aquisição do prédio constituído já em propriedade horizontal.

XI - Afastando-se uma interpretação do artigo 6º do DL nº 48.051, de 1967, que equipare ilegalidade a ilicitude, adoptando um conceito de ilicitude que aproxima a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas [por actos de gestão pública] da responsabilidade civilística, exigindo-se que a ilegalidade se traduza na violação de direitos subjectivos do lesado ou, pelo menos, de interesses cuja protecção a norma violada se destina a proteger.

XII - O acto licenciador de 6 de Outubro de 2006, emitido pelo Réu, de controvertida ilegalidade, não será ilícito, porquanto não violou direitos subjectivos da titular do processo de licenciamento, legitimamente transmitidos à Autora, por via da aquisição do prédio inicialmente licenciado, com seis pisos acima e dois abaixo da soleira, nem interesses cuja protecção a norma violada se destina a proteger, tanto assim que, por via da necessária revisão da norma, foi mantido o prédio construído, talqualmente, ab initio, se mostrava licenciado.

XIII - A sentença recorrida entendeu que o acto licenciador de 6 de Outubro de 2006 consubstancia culpa leve do Réu, o que faz na decorrência da ilicitude do acto, à revelia da mais recente Jurisprudência do STA, como melhor se explanou supra, matéria essa que envolve a decisão de uma questão de direito insusceptível de confissão, que este Tribunal de recurso poderá apreciar e decidir, em consonância com o regime legal aplicável, de acordo com a melhor Doutrina e a Jurisprudência mais recente.

XIV - Nos termos do número 1 do artigo 4º do RCEEP, “A culpa dos titulares do órgão ou dos agentes “é apreciada nos termos do artigo 487º do C. Civil”, que, no seu número 1, estipula que “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”, que, nos termos do seu número 2 “é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.

XV - No caso dos autos, na decorrência do que se alegou supra, a propósito da pretensa ilicitude do acto licenciador, não poderá presumir-se judicialmente a culpa do Município Réu, sendo necessário indagar da sua existência, em função do circunstancialismo concreto do acto praticado, sendo que a mesma pressupõe sempre um juízo de censura, através de factos indiciários, atinentes, designadamente, ao carácter preciso e inequívoco das normas que à Administração, no caso concreto, cabia aplicar.

XVI - Havendo, assim, margem para a subjectividade interpretativa, com a inerente discricionariedade técnica, apontada pelo IGF, o certo é que o despacho licenciador, de 6 de Outubro de 2006, de folhas 79, volume I/II, fundamentou, de forma objectiva, convicta e exaustiva, o licenciamento do projecto de arquitectura apresentado, admitindo também a sentença recorrida que o Réu possa ter sentido alguma dificuldade na interpretação das normas aplicáveis.

XVII - Aliás, o projecto de construção licenciado pelo despacho em causa, de 6 de Outubro de 2006, foi apresentado pela titular do processo, na convicção de que o mesmo respeitava o Regulamento do Plano Director Municipal de (...) em vigor.

XVIII - Atendendo ao circunstancialismo do caso concreto, exaustivamente analisado na decisão licenciadora, de 6 de Outubro de 2006, não nos parece que o Autor do referido acto tenha agido com culpa, mesmo na modalidade de culpa leve, entendida como aquela em que não cai o bonus pater famílias, associando-se ou dissociando-se a culpa à ilicitude.

XIX - Entendemos, no caso sub-judice, que do acto licenciador, de 6 de Outubro de 2006, não resultaram danos indemnizáveis.

XX - O facto ilícito susceptível de produzir um dano indemnizável foi o despacho licenciador, de 6 de Outubro de 2006, que concedeu à requerente o direito de construir um prédio com 6 pisos acima e dois abaixo da cota de soleira, entretanto caducado, quando, pela interpretação que veio a prevalecer das normas do Regulamento do PDM em vigor à data do licenciamento, só eram permitidos cinco pisos acima da cota de soleira.

XXI - Construção essa que, mercê da tempestiva revisão do Regulamento do PDM de (...), voltou a ser licenciada (legalizada), com os mesmos pisos e características do licenciamento inicial declarado nulo, em processo titulado pela Autora.

XXII - A requerente inicial do licenciamento, não fora o acto nulo, teria visto indeferida a projectada construção de um prédio com seis pisos acima da cota de soleira, pelo que, na altura, caso não impugnasse essa decisão, só poderia licenciar novo projecto com cinco pisos acima da cota de soleira.

XXIII - Em vez de um dano indemnizável, do acto nulo em causa resultou uma manifesta vantagem para a requerente do licenciamento, que se transmitiu para a esfera patrimonial da Autora, ficando enriquecida em relação à situação em que ficaria se o projecto...

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