Acórdão nº 147/21 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Março de 2021
Magistrado Responsável | Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro |
Data da Resolução | 19 de Março de 2021 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO Nº 147/2021
Processo n.º 338/2020
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro
Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, em que é recorrente o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho daquele Tribunal, de 8 de abril de 2020.
2. No âmbito de inquérito criminal, que corre os seus termos contra desconhecidos e que não tem arguidos constituídos, o Ministério Público apresentou ao Juiz de Instrução Criminal um conjunto de suportes digitais contendo a gravação de escutas telefónicas em curso, com vista à respetiva validação, nos termos do artigo 188.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Nessa ocasião, requereu que fosse determinada a destruição imediata dos suportes técnicos relativos a determinadas sessões de conversação, devidamente identificadas, por dizerem respeito a terceiros não suspeitos, nos termos do artigo 188.º, n.º 6, alínea a), do Código de Processo Penal.
Sobre este requerimento recaiu o despacho de indeferimento, onde se pode ler o seguinte:
«II – Promoção de fls. 1128, ponto II, primeiro parágrafo:
Indefiro o promovido, porquanto, ainda que as gravações indicadas contenham conversações entre terceiros não suspeitos, é nosso entendimento, não obstante o teor do n.º 6 do art. 188.º, não dever ser ordenada a destruição imediata dos suportes técnicos relativos a conversações manifestamente estranhas ao objeto do processo, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância.
A defesa tem o direito constitucional de, findo o período de segredo interno, conhecer a totalidade das escutas telefónicas realizadas no processo, só assim assistindo ao arguido a possibilidade de contrariar a interpretação que o Ministério Público e o juiz fizeram das conversações gravadas, só assim o arguido podendo verdadeiramente contraditar a prova da acusação.
A destruição imediata de elementos de prova obtidos mediante interceção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância, viola as garantias de defesa previstas no art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, pelo que ordeno a sua manutenção, devendo ser guardadas em envelopes lacrados e à ordem do Tribunal.»
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso obrigatório, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 188.º, n.º 6, alínea a), do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
O Ministério Público produziu alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«4. Em conclusão:
4.1. O regime jurídico relativo aos meios de obtenção de prova e valoração dos elementos de prova daí decorrentes, principalmente no que concerne aos meios considerados mais invasivos como a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas reveste-se, no ordenamento processual penal português, de especial rigor e cuidado, atendendo aos direitos fundamentais que aí podem conflituar.
4.2. Estes meios só são admissíveis na justa medida da sua necessidade para a investigação criminal, enquanto instrumento dos fins da ação penal, devendo obedecer ao princípio da proporcionalidade a contração de direitos fundamentais eventualmente atingidos, no respeito por uma verdadeira concordância de direitos.
4.3. A previsão do nº 6 do artigo 188º do Código Penal tem subjacentes os princípios constitucionais da proteção ao direito ao sigilo das telecomunicações, consagrado no n.º 4 do artigo 34º da CRP e da reserva de intimidade da vida privada, previsto no n.º 1 do artigo 26º da CRP.
4.4. Assim, a destruição de suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo, ao abrigo da alínea a) do artigo 188º, n.º 6 do Código de Processo Penal, tem por base a proteção do direito ao sigilo das telecomunicações, prevista no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa e a proteção da reserva de intimidade da vida privada de terceiros, em relação aos quais a lei de processo criminal não autoriza a interceção e a gravação de conversações, nos termos do n.º 1 do artigo 26.º da CRP.
4.5. Pelo que, defender a destruição destes suportes técnicos e relatórios apenas depois do arguido deles ter conhecimento e de poder pronunciar-se sobre a sua relevância, comportaria uma desnecessária e inaceitável compressão daqueles direitos constitucionalmente consagrados.
4.6. Tanto mais grave quanto se reporta a terceiros estranhos ao processo como acontece no caso ora em apreço.
4.7. Segundo a disposição constitucional do n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso,
4.8. Este princípio engloba, como esclarecem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, (a) o dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afetados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efetiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, o direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; (d) a proibição de ser condenado por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respetivos fundamentos”.
4.9. Constituindo-se o princípio do contraditório como uma das componentes específicas das garantias de defesa.
4.10. No entanto é necessário configurar o princípio do contraditório à luz da estrutura acusatória do processo penal enquanto princípio estruturante do processo penal constitucionalmente consagrado.
4.11 . Como decorre do disposto no n.º 5 do artigo 32º da CRP o princípio do contraditório traduz-se na estruturação da «audiência de julgamento e dos atos instrutórios que a lei determinar» em termos de assegurar um debate entre a acusação e a defesa.
4.12. As garantias de defesa, reconhecidas no texto constitucional traduzem-se, pois, na previsão de um processo criminal com estrutura acusatória em que apenas a audiência de julgamento e certos atos instrutórios especialmente previstos na lei estão subordinados ao princípio do contraditório.
4.13. Esse direito de contraditório existe em relação às provas em que se funda a acusação que serão ponderadas pelo juiz de instrução, para efeito de emitir o despacho de pronúncia, e levadas a julgamento, para efeito a condenação do réu.
4.14 . Pelo que só em relação a essas provas – e não a quaisquer outras que tenham sido consideradas irrelevantes e destruídas ou abandonadas pela acusação – terá o arguido interesse em pronunciar-se, contraditando-as.
4.15 . É o exercício desse direito, nas fases processuais subsequentes à investigação, que permite dar cumprimento ao principio da igualdade de armas, equilibrando a posição jurídica da defesa em relação à acusação.
4.16. É essa também a essência do processo equitativo ou do due process of law, que pressupõe como um dos aspetos fundamentais (para além da independência e imparcialidade do juiz e a lealdade do procedimento) a consideração do arguido como sujeito processual a quem devem ser asseguradas as possibilidades de contrariar a acusação.
4.17. Assim, por tudo o exposto deve considerar-se como constitucionalmente conforme a norma da alínea a) do n.º 6 do artigo 188.º do Código do Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo, que digam respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo 187.º do mesmo Código, sem que antes o arguido deles tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre a sua relevância.»
4. Dado que não há sujeito processual que possa ocupar a posição de recorrido, não houve lugar a contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. Em face do teor da decisão recorrida e do requerimento de interposição do recurso, a norma que constitui o seu objeto é a do artigo 188.º, n.º 6, alínea a), do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, no sentido de que o juiz de instrução criminal determina a destruição imediata dos suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo, que digam respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo 187.º do mesmo diploma, sem que antes o arguido deles tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre a sua relevância.
O artigo de onde é extraída a norma em apreço tem a seguinte redação:
Artigo 188.º
Formalidades das operações
1 - O órgão de polícia criminal que efetuar a interceção e a gravação a que se refere o artigo anterior lavra o correspondente auto e elabora relatório no qual indica as passagens relevantes para a prova, descreve de modo sucinto o respetivo conteúdo e explica o seu alcance para a descoberta da verdade.
2 - O disposto no número anterior não impede que o...
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