Acórdão nº 1901/15.7TDLSB.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 23 de Fevereiro de 2021

Magistrado ResponsávelGOMES DE SOUSA
Data da Resolução23 de Fevereiro de 2021
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: A - Relatório: No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguida (...), imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de: - um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, por omissão, previsto e punido pelo artigo 150.º, n.º 2 e com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código Penal e - um crime de ofensas à integridade física, por omissão, previsto e punido pelo artigo 144.º al. a) e b), com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código penal.

(...), em representação do seu filho, deduziu pedido cível contra a arguida, (…) e ULSNA – Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano EPE, pedindo a condenação solidária dos demandados no pagamento do montante que se vier a apurar por conta da incapacidade resultante para o lesado, e por danos não patrimoniais sofridos pelo lesado o montante de €40.000,00. Montantes esses acrescidos de juros legais até integral pagamento.

A ULSNA contestou, invocando a incompetência do Tribunal em razão da matéria e impugnando os factos alegados pela demandante, nos termos constantes de fls. 282-287.

*** A final e por sentença lavrada e depositada a 9 de Julho de 2020 veio a decidir o tribunal recorrido:

  1. Da parte Criminal: 1. Em face do exposto decido, julgar a acusação improcedente, por não provada e, em consequência, decido, absolver a arguida (...) dos crimes que lhe vinham imputados na acusação; 2. Declaro cessada a medida de coacção a que a arguida se encontra sujeita, nos termos do disposto no art.º 376.º, n.º 1 do CPP; 3. Custas pela assistente, nos termos do disposto no art.º 515.º, n.º 1, al. a) do CPP, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

  2. Da parte cível: a) Julgo procedente, por provado, o pedido cível deduzido por (...), em representação do seu filho (…) contra (...) e, ULSNA – Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano EPE em consequência, condeno, solidariamente as demandadas no pagamento da quantia de quarenta mil euros, acrescida de juros legais vencidos e vincendos desde o trânsito em julgado da presente sentença até integral pagamento; b) Custas, em partes iguais, pelas demandadas; * O Ministério Público não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1) Vem o presente recurso interposto do despacho proferido no final da audiência de julgamento nos termos do qual a Mmª. Juiz considerou verificada uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, dando cumprimento ao disposto no artigo 359º, nº1 e3do Código de Processo Penal, bem como da subsequente sentença proferida que, por não ter existido concordância da arguida relativamente à alteração comunicada e por falta do elemento subjectivo dos crimes que lhe eram imputados, absolveu a arguida.

    2) Aceitando-se que em sede de julgamento apenas foi feita prova de uma conduta negligente por banda da arguida susceptivel de integrar a prática do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art.º 148º nº1 e 3 do Cód. Penal (e não do crime de ofensa à integridade física grave previsto no artº 144º do CP); bem como com o aditamento de factos comunicado pela Mmª Juiz no despacho proferido em audiência de julgamento, o certo é que tal alteração não configura uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.

    3) A alteração de factos comunicada pela Mmª Juiz não redunda na prática de um “crime diverso” tal como definido pelo art.º 1º alínea f) do CPP.

    4) Os tipos legais previstos no art.º 148º e art.º 144º do CP derivam do mesmo tipo fundamental - o crime de ofensa à integridade física simples previsto no art.º 143º nº1 do CP) - e tutelam o mesmo bem jurídico.

    5) Os factos comunicados pela Mmª Juiz susceptíveis de serem configurados como alteração aos factos descritos na acusação não bulem com o contexto de espaço, tempo, nem, no essencial, com o modo de cometimento dos factos descrito na acusação, posto que estamos perante o mesmo facto histórico; o mesmo pedaço devida; o mesmo evento naturalístico.

    6) A modificação factual comunicada pelo Tribunal não alterou a essencialidade da acção levada a cabo pela arguida tal como descrita na acusação pois que está em causa a mesma omissão de procedimentos por parte da arguida, enquanto médica, bem como o mesmo resultado (a perda de um órgão por parte de um menor).

    7) É também incontestável que se mantém o nexo causal entre a acção/omissão do agente (a omissão da conduta exigível) e o resultado produzido.

    8) Não estamos perante um crime diverso porque tanto os factos descritos na acusação como na comunicação operada pelo Tribunal se reportam à materialidade de uma mesma e única intervenção, que teve lugar num mesmo momento e local, tendo por agente a arguida e por paciente o ofendido, relativamente ao qual se descrevem as mesmas lesões típicas, infligidas pela arguida no exercício da medicina.

    9) A modificação factual em causa não importa qualquer alargamento do objecto do processo, nem tem quaisquer repercussões agravativas para a arguida, pelo contrário.

    10) A alteração comunicada, para além de preservar todo o contexto em termos de tempo, espaço e, no essencial, o modo da prática dos factos tal como descrita na acusação apenas comporta uma alteração da qualificação jurídica, de um crime de ofensas dolosas (Art.º 144º alínea a) e b) do CP) para um crime de ofensas negligente (Art.º 148º nº1 e 3 do CP), tendo este moldura penal muito inferior (constituindo um minus relativamente àquele).

    11) Deste modo, a alteração preconizada terá por efeito, não a agravação, mas diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis.

    12) Não existe pois, qualquer prejuízo para a defesa do arguido, antes resulta um benefício, dada a menor exigência no juízo de censura a formular.

    13) O presente caso não se enquadra no âmbito da jurisprudência fixada pelo acórdão 1/2015 do STJ publicado no Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27, porquanto no caso visado pelo douto Aresto, estava-se perante a total falta de preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal em causa pelo que a alteração preconizada implicaria a transformação de uma conduta atípica (não punível) numa conduta típica e punível, o que não sucede no caso concreto, dado que a conduta tal como descrita na acusação já seria punível.

    14) Efectivamente, no tocante ao crime de ofensa à integridade física grave a acusação descreve factos integrantes do dolo quer quanto ao tipo fundamental (art.143.º, n.º1 do Código Penal), quer relativamente às consequências que o qualificam, isto é, o resultado grave, previsto no art.º 144º do CP – cfr. teor dos pontos 16 a 25 da acusação.

    15) Emsuma, o elemento subjectivo deste tipo legal encontrava-se suficientemente descrito, pelo que, considerando o Tribunal que não foi feita prova do dolo mas apenas da negligência, deveria ter comunicado a alteração factual correspondente, como aquilo que era: uma alteração não substancial tradutora de um juízo de censura menos grave do que o plasmado na acusação e logo compreendido naquela porque referente ao mesmo circunstancialismo e à mesma conduta da arguida violadora (quer seja vista à luz do dolo quer seja observada sob o prisma da negligência), do mesmo bem jurídico.

    16) A modificação factual comunicada pelo Tribunal enquadra-se numa alteração não substancial dos factos constantes da acusação, uma vez que não descaracteriza o quadro factual da acusação nem belisca a identidade do processo pelo que salvaguardada que fique a comunicação à arguida da factualidade indiciada, nos termos do art.º 358º1 e 3 do CPP, dando-se a esta a possibilidade de esgrimir os argumentos e as provas que entender, não resultam minimamente comprimidos os seus direitos de defesa.

    17) Da mesma modificação factual resulta ainda uma alteração da qualificação jurídica (com diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis) pelo que apenas se impunha que houvesse lugar à comunicação prevista no artigo 358.º, n.º 1 e nº 3 do Código do Processo Penal ficando desse modo plenamente salvaguardados o exercício do contraditório e o direito de defesa da arguida.

    18) Em defesa da tese de que não estamos perante crime diverso e de que a alteração preconizada não resultaria qualquer prejuízo para a defesa da arguida, formulem-se ainda as seguintes questões: a convolação do crime de ofensas dolosas no tipo negligente constitui uma surpresa com a qual a arguida não poderia contar? A alteração factual em causa faz prever que haja a mínima alteração na defesa apresentada pela arguida? Não se defenderia a arguida da mesma forma? Não procurou por todos os meios a arguida ao longo do julgamento demonstrar que não omitiu quaisquer deveres de cuidado para com o ofendido? Cremos bem que sim e isto porque ao defender-se do mais, defendeu-se do menos! 19) Ao considerar verificada uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e ao aplicar o disposto no artigo 359º do C.P.P., violaram o despacho e a sentença recorridos o estatuído nos artigos 358º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal e art.º 148º nº1 e 3 do CP por referência ao art.º 144º alínea a) do Cód. Penal.

    20) O entendimento de que estamos perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação traduz-se na materialização de um conceito de justiça que privilegia a forma em detrimento da desejável realização de uma justiça material.

    21) Pelo que em consequência deve ser anulado o despacho proferido no final da audiência de julgamento nos termos do qual se considerou existir uma alteração substancial e revogada a sentença subsequente, e anular-se o julgamento, desde o momento em que finalizou a produção da prova (sem prejuízo porém para a renovação dos meios de prova, se acaso tal se revelar necessário) e determinar-se que os autos baixem à 1ª...

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