Acórdão nº 892/18.7T8BJA.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelROSA TCHING
Data da Resolução14 de Janeiro de 2021
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2ª SECÇÃO CÍVEL *** I. Relatório 1. AA, BB e CC intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra DD e marido EE, FF, GG, HH, pedindo que seja reconhecido o seu direito de preferência na venda a esta ré do prédio dos demais réus.

  1. Citados os réus contestaram.

    A ré HH, excecionou a sua ilegitimidade bem como a falta de depósito de despesas e impostos pagos com a transmissão por parte dos autores.

    Deduziu ainda reconvenção, pedindo a condenação dos autores no pagamento à reconvinte do montante de € 148.846,09, acrescido de juros, à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até efetivo pagamento.

    Os demais réus defenderam-se por impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

  2. Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho e não admissão da reconvenção.

    Fixado o valor da ação, foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as invocadas exceções de ilegitimidade e de falta de depósito de despesas e impostos pagos com a transmissão.

    Foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

  3. Efetuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, por não provada, e em consequência absolveu os réus dos pedidos contra si deduzidos.

  4. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação …. que, por acórdão proferido em 23 de abril de 2020, decidiu: a) julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida; b) reconhecer aos Autores AA, BB e CC, o direito a preferirem na aquisição do prédio denominado “…”, inscrito na matriz rústica sob o artigo … da secção …, e na matriz urbana sob o artigo …, da freguesia de …., concelho de ….., e assim haver para si o referido prédio, pelo preço de €135.000,00, em substituição da Ré compradora HH, condenando-se esta a entregar aos Autores o referido prédio; c) determinar a entrega à Ré compradora HH, o valor depositado pelos Autores, no montante de €135.000,00.

    6. Inconformada com este acórdão, a ré HH, dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem: « I - O objeto do litígio da presente ação, é o seguinte: saber se deve ser reconhecido aos Autores o direito de preferirem na aquisição do prédio identificado no Ponto 2 dos Factos Provados, ou seja, “Prédio Misto, denominado por “…”, sito na freguesia de ……, concelho de …., composto a parte rústica, por cultura arvense, montado de sobro ou sobreiral e oliveiras, com a área de 28,8125 hectares, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …. secção …., e a parte urbana composta por morada de casa de rés-do-chão com três compartimentos para habitação e dependências com a área de 174,10 m2, inscrito na matriz sob o artigo ….” II - Consagra o artigo 1380.º, n.º 1 do Código Civil CC que: “Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.” III - O que é fundamental para decidir sobre a existência de direito de preferência nos termos peticionados pelos Autores é a distinção entre prédio rústico e prédio urbano.

    IV - Conforme alegado no douto Acórdão, "O direito de preferência fundado na confinância de prédios rústicos insere-se num conjunto de disposições legais que têm por finalidade lutar contra a excessiva fragmentação da propriedade rústica, atendendo aos inconvenientes de ordem económica que dela resultem, designadamente a baixa produtividade de prédios de reduzida área." (cfr. Assento do STJ de 18 de Março de 1986).

    V - Neste mesmo sentido, veio o legislador estabelecer que, nos casos em que está em causa um prédio urbano, não existe direito de preferência, cfr. artigo 1381.º, alínea a) primeira parte do CC.

    VI - Veio o Acórdão ora recorrido criar, a partir da sua interpretação do artigo 204.º, n.º 2 do Código Civil, o critério da função dominante do prédio.

    VII - Começa por extrair do artigo 204.º, n.º 2 do Código Civil que “o critério legal, para a lei civil, para classificar um o prédio como rústico ou urbano é o da prevalência da afetação, ou seja, da função dominante do prédio, entendida esta à luz da legislação em vigor, ou seja, entendida a função dominante não pela qual é dada pelos proprietários num dado momento, mas pela função potencial do prédio em face das suas caraterísticas”- (pág. 6, último parágrafo).

    VIII - Em seguida, distingue a “utilização dominante” da “função dominante”, ou seja: admite que a utilização dominante do prédio dos Autores é a da habitação; contudo, decide que a função dominante desse prédio é a agrícola, pois não interessa a utilização dada, mas antes interessa a “função potencial do prédio face às suas caraterísticas”.

    XIX - Concluindo, que ambos os prédios em questão – o prédio dos Autores e o prédio sobre o qual os Autores pretendem exercer o seu direito de preferência – são rústicos.

    X - Ora, não pode o ora Recorrente concordar com o critério proposto pelo douto Acórdão, pois não se percebe como pode ser retirado da lei, visto não haver qualquer referência, ou sequer sugestão, à “função potencial”. Para além de esta interpretação ser, acredita o Recorrente contrária à lei, também o é em relação à doutrina e à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

    XI - Conforme explica o Senhor Professor Doutor Menezes Cordeiro e tal como consta da fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.03.2010[1] (processo n.º 186/1999.P1.S1) citado na Sentença proferida em primeira instância: Quando contrapôs imóveis a móveis, diz-nos Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Parte Geral-Tomo II–págs. 121e 122), “o legislador teve o cuidado de precisar os primeiros e de remeter, por defeito, todo o restante, para os segundos. Mas, no tocante à dicotomia prédios rústicos-prédios urbanos, o legislador quis definir uns e outros. As duas definições parcelares daí resultantes não se articulam inteiramente. Resultam, daí, problemas complexos que, até hoje, não têm encontrado uma solução segura.

    E, debruçando-se sobre a questão de saber qual a natureza de um prédio que contenha construções, refere o mesmo Autor que a doutrina portuguesa mais recente aponta quatro teorias: “teoria do valor; teoria da afectação económica; teoria do fraccionamento e teoria da consideração social.” Depois de analisar cada uma dessas teorias, escreve, a págs. 123 e 124: “Ficam-nos, pois, as noções do Código Civil: o prédio rústico é o terreno, ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e o urbano um edifício, com o logradouro. Vamos avançar a partir da fórmula do artigo 204º… na linha da teoria da afectação económica. Duas precisões prévias devem ser feitas: para efeitos de qualificação civil, é indiferente o tipo de inscrição matricial, dada a especialidade dos critérios fiscais, bem como o tipo de descrição predial; além disso, a lei não admite, aqui, o qualificativo de “prédio misto”… Temos, depois, os núcleos dos conceitos de prédios rústicos e urbanos: um terreno não construído é rústico; o terreno totalmente coberto por um edifício é, seguramente, urbano.

    E como a construção é obra humana, podemos concluir que o proprietário pode, por essa via e dentro da lei, transformar o prédio e logo determinar a sua natureza rústica ou urbana.

    Finalmente e ainda em pano de fundo: por defeito, os prédios são rústicos. Não sendo possível qualificá-los como um edifício (ainda que com logradouro), impõe-se a rusticidade.

    Prosseguindo…nos halos dos conceitos, encontramos a noção de edifício. Na lógica do art. 204º, nº 2, “edifício” é uma construção importante, ou de habitação ou pronta a habitar; todavia, o prédio urbano não reduz ao espaço delimitado pelas paredes e telhado, antes abrangendo também os terrenos que lhe sirvam de logradouro. A ideia de “logradouro” torna-se, assim, a chave da distinção”.

    XII - Ora, tendo em conta os factos provados sob os pontos n.º 10 e 11, que ditam que os Autores, ora Recorridos, residem no prédio de que são proprietários, e que não desenvolvem nesse prédio qualquer atividade agrícola, não é possível, acredita o ora Recorrente, qualificar o prédio como rústico.

    XIII - Não desenvolvendo os Autores no prédio qualquer atividade agrícola, uma vez que apenas desenvolvem no seu prédio uma atividade de recolha de plantas que crescem de forma espontânea, que posteriormente utilizam para a produção de óleos essenciais, não sendo realizada qualquer outra exploração do prédio, ou seja, não desenvolvem nenhuma atividade económica, é inevitável determinar que o prédio dos Recorridos deve ser considerado um prédio urbano.

    XIV - Se assim não fosse, e o terreno dos Recorridos fosse, de facto, um prédio rústico (o que não se concede), qualquer prédio utilizado para habitação e não sendo nele desenvolvida qualquer exploração agrícola, desde que abrangesse culturas arvenses, mesmo que não as explorasse nem tivesse intenções de o fazer, seria considerado um prédio rústico.

    XV - E tal argumento não pode ser procedente. Por isso mesmo explica o Senhor Professor Doutor Menezes Cordeiro que, “edifício” é uma construção importante, ou de habitação ou pronta a habitar; todavia, o prédio urbano não reduz ao espaço delimitado pelas paredes e telhado, antes abrangendo também os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.

    XVI - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008[2] (processo n.º 08A075), em que é Relator Fonseca Ramos, vem desvalorizar o potencial de atividade agrícola (defendido pelo Acórdão ora Recorrido) valorizando, pelo contrário, a efetiva atividade desenvolvida: “III - A lei civil não conhece o conceito de prédio misto. O prédio misto é um tertium genus, já que os prédios, devem sempre que possível ser considerados de harmonia com a sua parte principal (…) e essa, a priori, ou é rústica ou...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
4 temas prácticos
4 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT