Acórdão nº 765/16.8T8AVR.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 15 de Dezembro de 2020

Magistrado ResponsávelRICARDO COSTA
Data da Resolução15 de Dezembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo n.º 765/16.8T8AVR.P1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 1.ª Secção Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1.

AA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, médico, pedindo a condenação do Réu em indemnização no valor de 193.588,13 €, acrescida de juros vincendos, à taxa legal prevista para os juros moratórios civis, desde a data da citação até integral pagamento, no contexto da prática de acto médico cirúrgico (“extracção de pólipo intestinal”) e suas consequências.

O Réu apresentou a sua Contestação, arguindo a excepção de prescrição quanto ao alegado em sede de responsabilidade extracontratual e impugnando uma parte substancial da factualidade alegada pela Autora. Juntou, em referência ao item 57.º, Parecer de Professor Catedrático de Cirurgia da FMU…. (“Caso de explosão cólica associado a excisão de papila hipertrófica com ansa diatérmica”), que consta a fls. 271 dos autos. Requereu a intervenção principal provocada (arts. 316º e 319º do CPC) da seguradora «Axa Portugal – Companhia de Seguros, S.A.», actualmente «Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A.», em virtude de ter celebrado com a mesma um contrato de seguro com transferência da responsabilidade civil extracontratual e contratual pelos actos praticados no exercício da sua profissão de médico gastrenterologista. Em resposta, a Autora pronunciou-se no sentido da improcedência da invocada excepção de prescrição e sobre esclarecimento solicitado pelo Réu sobre a apólice do contrato de seguro, o que motivou a pronúncia do Réu a fls. 299 e ss.

Admitido o chamamento (fls. 279) e cumprido o art 319º do CPC com a citação da Interveniente, apresentou esta a sua Contestação, a fls. 314 e ss, arguindo as excepções de prescrição e de exclusão do dever de indemnizar, esta última em face das condições gerais da apólice do respectivo contrato de seguro (arts. 2º e 5º, j)). Ademais, impugnou a matéria de facto vertida no articulado inicial. Pugnou pela improcedência da acção e absolvição do pedido.

  1. Foi realizada audiência prévia em …… 2016, em que foi proferido despacho saneador (fls. 347 e ss), com identificação do objecto do litígio e enunciados os temas da prova. Entre outros, foram proferidos despachos a solicitar ao colégio da especialidade da Ordem dos Médicos a elaboração de um parecer sobre os procedimentos adoptados no acto médico em discussão nos autos (que consta a fls. 403 e ss), que respondesse à questão identificada no despacho [“Se se mostra conveniente ou adequado para as finalidades da intervenção em causa (electro-coagulação de um pólipo hemorroidário) a realização de procedimentos prévios de preparação, designadamente, jejum e limpeza da parte distal do intestino”], e a determinar a realização de uma perícia médico-legal, com vista a avaliar os danos e sequelas que a autora apresenta (que consta a fls. 377 e ss, 383 e ss).

  2. Tramitada a instância em matéria probatória, foi realizada audiência final de discussão e julgamento em sessões realizadas em …… e ……2018, …..2018 e ……2018.

  3. O Juiz 0 do Juízo Central Cível …… (Tribunal Judicial da Comarca……) proferiu sentença em …… 2018, em que, depois de identificadas as questões a dirimir (“a) Responsabilidade (civil) inerente à realização do acto médico descrito nos autos; b) Prescrição do direito invocado pela autora e exclusão, em conformidade com o teor da apólice, do dever de indemnizar relativamente à ré seguradora, caso se entenda ser o réu responsável pelo ressarcimento dos danos que a demandante veio invocar.”), se julgou a acção improcedente por se ter concluído que o Réu não incorreu na obrigação de indemnizar a Autora, ficando prejudicado o conhecimento da excepção de prescrição, com a consequente absolvição do Réu do pedido.

  4. A Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação ……(TR…), concluindo pela procedência uma vez reconhecida e declarada a nulidade da sentença recorrida, nos termos do art. 615º, 1, b), c) e d), do CPC, a modificação invocada da matéria de facto provada e não provada e a revogação da sentença recorrida e condenação do Réu.

    Em acórdão proferido em …… 2019, o TR…. julgou improcedentes todas as nulidades invocadas, modificou-se em parte a matéria de facto (provada e não provada) – alteração do facto provado 28.; aditamento do facto provado 87-A; eliminação dos factos não provados 36. e 37 – e julgou-se a acção parcialmente procedente e condenam-se solidariamente o Réu e a seguradora Interveniente a pagar à Autora a quantia de €100.405,15 (cem mil quatrocentos e cinco euros e quinze cêntimos) – (i) “dano decorrente do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica” = € 70.000; (ii) “danos não patrimoniais” = € 30.000; (iii) “reembolso de despesas médicas e medicamentosas” = € 405,15 –, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados, sobre € 405,15, desde a citação até à data do presente acórdão, e, sobre € 100.405,15, a partir da data deste acórdão e até ao pagamento[1].

  5. Inconformado, o Réu interpôs recurso de revista para o STJ, visando o provimento tendo em conta a violação dos arts. 483º, 487º, 499º, 562º, 563º, 566º, 799º e 1154º, do CCiv., e 154º e 607º do CPC, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões: “(…) 2. O recorrente havia sido absolvido por ter sido entendido não ter praticado nenhum facto ilícito ou culposo.

  6. Embora não o diga expressamente, depreende-se da fundamentação do acórdão que este considerou estar-se perante um contrato de prestação de serviços gerador de responsabilidade contratual.

  7. Mais sustenta que nas intervenções cirúrgicas realizadas no canal anal deve ser considerada a possibilidade dos gases entrarem em contacto com o electrocutor, provando explosão. E que o recorrente não adoptou qualquer procedimento com vista a evitar tal contacto que, a ter sido utilizado, teria evitado a explosão e que não actuou com os cuidados a que, como médico, estava obrigado e de que era capaz.

  8. Ou seja, adoptou uma conduta omissiva, geradora de culpa, entendimento que o recorrente não pode aceitar.

  9. Antes de mais, diga-se que, como está dado como provado, à recorrida foram explicados os procedimentos necessários ao tratamento que ela manifestou vontade de fazer e no qual consentiu, a explosão, que não é normal, nem usual, foi provocada pela presença de gases explosivos no intestino da recorrida, nos procedimentos realizados no canal anal não é obrigatório proceder-se a técnicas de limpeza ou preparação cólicas de molde a que os resíduos fecais não dificultem ou impeçam uma boa observação e realização dos respectivos procedimentos, a limpeza do recto não impede que os gases provenham de zonas mais a montante e o recorrente interrompeu de imediato o procedimento após a ocorrência da explosão.

  10. Daí que o recorrente não tenha descurado nenhuma das suas obrigações, cumprindo escrupulosamente todos os procedimentos adequados à realização do tratamento.

  11. A responsabilidade civil médica comporta habitualmente uma obrigação de meios em que o médico se compromete a desenvolver, prudente e diligentemente, certa actividade para a obtenção de um determinado resultado, sem assegurar a sua produção, cumprindo as exigências das "legis artis".

  12. Nessa medida, era à recorrida que competia provar que o recorrente violara os deveres objectivos de cuidado que sobre ele impendiam e que não agira em conformidade com as regras de actuação susceptíveis de, em abstrato, conduzirem à produção do resultado obrigado (não há aqui lugar à aplicação da regra de inversão do ónus da prova prevista no artigo 799º do Código Civil).

  13. Apenas haveria incumprimento do recorrente se se tivesse provado o cometimento por ele de falha técnica, por acção ou omissão.

  14. A ignição de gases eólicos provocadora das lesões da recorrida, não teve origem em má prática do recorrente, mas resultou antes de um acto natural incontrolável pela boa técnica médica do recorrente.

  15. E se ao recorrente não é assacável qualquer responsabilidade no âmbito da responsabilidade extra contratual, a igual conclusão se chega em sede de responsabilidade contratual.

  16. O acórdão recorrido "despacha" em três escassas páginas a fundamentação (exígua) da alegada responsabilidade do recorrente, apoiando-se num aresto do STJ que versa uma colonoscopia, procedimento distinto do dos autos, 14. Enquanto que no primeiro está em causa a perfuração do intestino no decurso de uma colonoscopia, o segunda versa uma polipectomia, procedimento médico minimamente invasivo, realizado no canal anal.

  17. No caso do acórdão do STJ a perfuração resultou de má manipulação do aparelho por distracção, falta de destreza ou imperícia e no caso dos autos a perfuração teve origem numa explosão decorrente da existência de gases no canal anal da recorrida.

  18. Nas colonoscopias a preparação intestinal é fundamental para a qualidade do procedimento e a explosão colónica no seu decurso, embora rara, é temida atenta a acumulação de gás com concentrações explosivas durante o preparo intestinal, 17. Já nas polipectomias, a preparação não é obrigatória e o recorrente não tinha possibilidade de evitar o evento, já que as hipóteses da ocorrência de explosão eram as mesmas com ou sem preparação.

  19. Extrapolando de tudo quanto ficou provado, o acórdão recorrido considerou que nas intervenções cirúrgicas no canal anal (não é o caso dos autos) deve ser equacionada a hipótese dos gases entrarem em contacto com o aparelho de electrocoagulação e provocarem uma explosão.

  20. Não há nenhum facto provado nos autos que autorize tal conclusão, nem são conhecidas na literatura médica casos de explosão na polipectomia por electrocoagulação.

  21. Além de que, como está dado como provado, a limpeza da parte distal do recto não impede que os gases provenham de zona mais a montante pelo que mesmo que fosse obrigatório ou recomendável a realização de uma preparação prévia nem esse facto impediria a existência de gases.

  22. Não é por isso...

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