Acórdão nº 1717/19.1PFLRS-A.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 03 de Dezembro de 2020

Magistrado ResponsávelMARIA DO CARMO FERREIRA
Data da Resolução03 de Dezembro de 2020
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam em conferência os Juízes da 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO.

No processo supra identificado, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Loures - Juiz 4, o Mº.Pº. veio interpor recurso do despacho judicial datado de 20 de Abril de 2020, do qual discorda em parte.

* Na motivação recursiva, junta aos autos, conclui aquele Magistrado: (transcreve-se) 1 - Constitui objecto do presente recurso o despacho proferido em 20/04/20, no qual a Mmª. Juiz recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls 146 a 154 dos autos, contra o arguido AA pelos factos e qualificação dela constantes, considerando, contudo não escritos os factos constantes dos arts 3°,5°,6°, e 7° da acusação por se referir a factos apreciados no processo judicial ali indicado, tendo naqueles autos sido proferido despacho de arquivamento, despacho que não foi objecto de fiscalização, quer por reclamação para o superior hierárquico, quer por abertura de instrução, pelo que não podem ser objecto de apreciação nos presentes autos sob pena de violação do principio ne bis in idem nos termos do art. 29° n°5 da CRP.

2 - Fundamentou a Mmª Juiz a sua posição da seguinte forma: Recebo a acusação deduzida nos presentes autos pelo Ministério público (fls 146 e segs) contra AA, pelos factos e qualificação dela constantes os quais se dão como reproduzidos, considerando-se contudo não escritos os arts 3°,5°,6°, e 7° da acusação por se referir a factos apreciados no processo judicial ali indicado, tendo naqueles autos sido proferido despacho de arquivamento, despacho que não foi objecto de fiscalização, quer por reclamação para o superior hierárquico, quer por abertura de instrução, pelo que não podem ser objecto de apreciação nos presentes autos sob pena de violação do principio ne bis in idem nos termos do art. 29° n°5 da C. R.P.; 3 - Salvo o devido respeito, não concordamos com a decisão da Mmª Juiz, pelos motivos que passamos a expor: O arguido vinha acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152° n°1 al. a) e 2 al a) do C. Penal, e com pena acessória nos termos do n° 4 e 5 do citado preceito legal.

4 - A fase em que os presentes autos se encontram, em que foi deduzida acusação e não foi requerida a abertura de instrução, ou seja o processo transitou directamente para a fase de julgamento, esta fase de julgamento, no processo comum (Livro VII do Código de Processo Penal comporta três subfases: dos actos preliminares (artigos 311.° e segs.), da audiência (artigos 321.° e segs) e da sentença (artigos 365 e segs); 5 -A primeira intervenção do juiz é, então, para sanear o processo, sendo este o primeiro de três distintos momentos em que pode conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, que foi o que a Mmª Juiz fez; 6 -Tem sido largamente discutido o âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 311.° ao juiz de julgamento e, se pode considerar-se pacífico, p. e.x.,, o entendimento de que "não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação", já não deparamos com a mesma unanimidade quando se procura saber se o juiz (de instrução ou de julgamento) pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito ou para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido; 7 - No entanto, o aspecto que tem suscitado maior controvérsia prende-se com o âmbito do poder de sindicância da acusação pelo juiz de julgamento, nomeadamente, se o Juiz pode emitir um juízo sobre a insuficiência dos indícios para ter sido deduzida acusação e, portanto, se pode rejeitar a acusação com fundamento em indiciação insuficiente, ou, se o juiz é livre de valorar jurídico-penalmente os factos da acusação e, portanto, se pode modificar a qualificação ou subsunção jurídica desses factos logo no despacho previsto no artigo 311.° do C. Proc. Penal ou em qualquer altura até à prolação da sentença, ou, o que deve considerar-se uma acusação manifestamente infundada; 8 - Ora, para respondermos a estas questões não se pode deixar de ter presente a estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art.° 32.°, n.° 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que uma pessoa só pode ser julgada por um crime mediante acusação deduzida por um órgão distinto do julgador, que lhe imputa esse crime, sendo a acusação condição e limite do julgamento, ou seja, sendo a acusação que define e fixa o objecto do processo e, portanto, o objecto do julgamento; 9 - É de notar a importância da separação das diversas fases e respectivas competências, pois que, como adverte Teresa Beleza, mesmo sendo diferentes a entidade que investiga e acusa e a entidade que julga, se esta (a entidade que julga) puder, livremente, investigar, procurar e acrescentar factos novos para decidir determinada causa, então, a estrutura acusatória do processo será puramente formal, pois acabará por ser o juiz a moldar o objecto do processo; 10 - Corolário deste modelo processual é o princípio do acusatório ou princípio da vinculação temática que significa que o juiz de julgamento está tematicamente vinculado aos factos que lhe são trazidos pela entidade que acusa, neste caso específico, o Ministério Público, sendo que o objecto do processo é fixado, quando o Ministério Público (ou o assistente, no caso de crimes particulares) deduz acusação ou, abstendo-se o Mº.Pº. de acusar, com o requerimento de abertura da instrução (RAI) pelo assistente, e esta é uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não intrometer-se na definição do thema decidendum; 11 -A vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz de julgamento não esteja envolvido na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação constituem corolários decisivos do princípio do acusatório de primordial importância; 12 -É, isso sim, constituído pelo facto histórico unitário", pelos concretos factos que se revelam como uma "tranche de vie", que formam um acontecimento da vida, delimitado no espaço e no tempo, que se imputam a um indivíduo determinado e é esse pedaço de vida que há-de subsumir-se à descrição abstracta de uma proposição penal; de um tipo legal; o concreto comportamento atribuído a determinado agente há-de corresponder, ou não, ao comportamento abstractamente previsto na lei penal, ou seja a um determinado tipo de crime; 13 - Face a este princípio, ao proferir o despacho a que alude o art. 311°, n° 2 CPP , o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada; 14 -A acusação, como refere o Prof. Germano Marques da Sirva, é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, é o pressuposto indispensável da fase de julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento; 15 - No caso, remetido o processo para julgamento, sem ter havido instrução, o juiz despachou no sentido de sindicar, apreciar, a acusação, traduzindo-se na prática numa rejeição parcial da mesma embora não se tenha querido dizê-lo, referindo apenas que dá os factos que enuncia como não escritos, portanto desconhecemos em que termos concretos é que é rejeitada parcialmente a acusação, de acordo com o art. 311° do C.P.P., pois que na prática é isso que é feito, com o argumento que os factos já foram apreciados no inquérito, e por conseguinte desconhecemos se considerou, ou não, a acusação manifestamente infundada, nomeadamente com o fundamento referido no n°3 al b), ou por qualquer outro motivo, ou se a considerou parcialmente nula, pois que nada diz; 16 -Face ao princípio do acusatório, nesta fase, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada; 17 -Uma opinião divergente, como a manifestada pela Mmª. Juiz recorrida...

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