Acórdão nº 2325/18-0T8VRL.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Novembro de 2020

Magistrado ResponsávelMARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Data da Resolução26 de Novembro de 2020
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1.

O Estado Português instaurou a presente ação contra “Lusitânia - Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a condenação desta no pagamento de € 116.232,43, a título de reembolso das quantias pagas a AA, agente da …, vítima de um acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, ocorrido em consequência de atuação culposa do segurado da ré.

  1. A ré contestou, invocando, além do mais, a exceção de prescrição.

  2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a prescrição e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 116.232,43, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

  3. Inconformada com a sentença, a ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que proferiu acórdão a confirmar a decisão recorrida.

  4. De novo irresignada, a ré interpôs a presente revista excecional, recurso que foi recebido pela Formação de Juízes Conselheiros, a que se alude no art. 672º, nº 3, do CPC.

    Nas suas alegações, em conclusão, disse: 1. O Acórdão recorrido não fez a melhor aplicação do direito aos factos provados, ao julgar totalmente improcedente a exceção de prescrição do direito de regresso.

  5. É objeto do presente recurso a resposta dada pelo Tribunal recorrido à controvertida questão de se saber se a quantia de € 28.745,22, relativa a pagamento de exames, consultas, tratamentos e medicamentos, constituiria um “núcleo indemnizatório autónomo, juridicamente diferenciado e normativamente cindível” face ao montante de € 87.487,21, relativo ao pagamento de vencimentos base e suplementos.

  6. Consequentemente é também objeto deste recurso a questão de se saber se a melhor aplicação do direito impõe que se contabilize um único prazo prescricional para todos os pagamentos ou, ao invés, prazos prescricionais autónomos para cada um dos “grupos” de pagamentos em causa.

  7. As questões objeto deste recurso, pela sua relevância jurídica, são claramente necessárias para uma melhor aplicação do direito [cf. artigo 672.º, n.º 1, alínea a) do CPC].

  8. A incerteza acerca da resposta às questões em causa extravasa manifestamente os interesses do caso concreto, e contende com a certeza e segurança jurídicas de todos os cidadãos que, lidando com assuntos de idêntica natureza, não podem legitimamente estar seguros da interpretação com que podem contar da parte dos Tribunais.

  9. A divergência na doutrina e na jurisprudência sobre as questões controvertidas aqui trazidas, bem como a complexidade que lhes subjaz, justificam a intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal de Justiça, na justa medida em que o atual debate doutrinário e jurisprudencial não atingiu o necessário patamar de segurança jurídica.

  10. As questões aqui trazidas assumem relevância jurídica que legitima este terceiro grau de jurisdição, porquanto podem conduzir a decisões contraditórias e até obstar à relativa previsibilidade da interpretação normativa com que, legitimamente, qualquer cidadão pode contar por parte dos Tribunais.

  11. Estas questões não contendem unicamente com os interesses da Recorrente, mas também com os interesses de todos os cidadãos de um Estado de Direito Democrático, assente no Princípio da Confiança.

  12. Concretizando, e descendo ao caso concreto, importa a Recorrida perceber quando se inicia a contagem destes prazos prescricionais para que possa ajustar a sua atuação, em conformidade.

  13. Concretizando (e extravasando), e exemplificando o interesse de um cidadão comum: o hospital público que detenha, ao abrigo do preceituado na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, direito de regresso sobre o médico que, no exercício da sua profissão, praticou com negligência grave ato lesivo num paciente, também não sabe a partir de quando começa a correr o prazo de prescrição dos “grupos” de pagamento que haja realizado diretamente ao paciente lesado.

  14. As questões objeto deste recurso contendem com interesses de particular relevância social, que justificam a excecional intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal de Justiça (cf. artigo 672.º, n.º 1 alínea b) do CPC).

  15. A controvérsia assume uma generalizada repercussão e um invulgar impacto no tecido social, pondo – no limite – em causa a eficácia do direito e minando a sua credibilidade, de molde a motivar a atenção de relevantes camadas da população e a extravasar os meros interesses particulares da Recorrente.

  16. O instituto da prescrição assenta nos Princípios da Certeza e Segurança Jurídicas, basilares num Estado de Direito Democrático, erigido com base no Princípio da Confiança.

  17. Tais princípios assumem-se como verdadeira salvaguarda dos cidadãos que – de antemão devem saber com que respostas acerca destas questões poderão legitimamente contar da parte dos Tribunais.

  18. As questões aqui trazidas contendem definitivamente com relevantes interesses da coletividade, que merecem a intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de, não o fazendo, gerarem-se sentimentos de intranquilidade e alarme social passíveis de colocar em causa a credibilidade a eficácia da aplicação do direito.

  19. Tudo considerado, deve este recurso de revista ser admitido e conhecido por este terceiro grau de jurisdição.

  20. Andou mal o Tribunal recorrido ao decidir que o pagamento de vencimento-base e suplementos e o pagamento de despesas médicas se reportam a um mesmo núcleo de indemnizações.

  21. Resulta da própria natureza das coisas que se trata de núcleos indemnizatórios autónomos, juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis.

  22. Deverá considerar-se a contagem de prazos prescricionais distintos e autónomos para cada um deles: tendo por base, por um lado, a data do cumprimento da obrigação de indemnização por períodos de incapacidade temporária absoluta (dies a quo: 13.05.2014); e por outro lado, a data do cumprimento da obrigação de indemnização por despesas médicas (dies a quo: 11.11.2016).

  23. O pagamento das indemnizações por períodos de incapacidade temporária absoluta e o pagamento das indemnizações por despesas médicas, ambas decorrentes do sinistro, apresentam conteúdo funcional diferente entre si, não tendo qualquer relação causal ou de dependência.

  24. As indemnizações por períodos de incapacidade temporária absoluta visam compensar o sinistrado pela sua perda absoluta da capacidade de trabalho/ganho, resultante do sinistro, durante um determinado período de tempo.

  25. Não se pretende ressarcir diretamente a lesão da integridade física do sinistrado, mas antes compensar a perda da capacidade de ganho, resultante dessa lesão.

  26. Já as indemnizações por despesas médicas visam diretamente o ressarcimento da lesão da integridade física do lesado, na sequência do sinistro.

  27. Nesse sentido, traduzem-se em quantias que o lesado despendeu com consultas médicas, tratamentos e medicamentos, de que se viu necessitado, na sequência do sinistro.

  28. É porque se trata de núcleos indemnizatórios autónomos, juridicamente diferenciados e normativamente cindíveis, que o cálculo da indemnização devida para cada um deles assenta em critérios distintos.

  29. No caso das indemnizações por despesas médicas, o cálculo indemnizatório assenta na teoria da diferença, consagrada no n.º 2 do artigo 566.º do CC.

  30. O lesado tem direito a ser...

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