Acórdão nº 101/17.6T8MTR.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Novembro de 2020
Magistrado Responsável | RIJO FERREIRA |
Data da Resolução | 26 de Novembro de 2020 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA ENTRE AA e consorte BB (aqui patrocinados por EE, adv.) Autores / Apelados / Recorrentes CONTRA CC e consorte DD (aqui patrocinados por FF, adv.) Réus / Apelantes / Recorridos I – Relatório Os Autores intentaram, em 2017, acção declarativa contra os Réus pedindo a condenação destes a retirarem o gado bovino de sua pertença do armazém que construíram junto à residência dos Autores e a limparem o dito armazém, bem como a pagarem-lhes a quantia de 10.000 euros a título de danos não patrimoniais, e juros.
Alegam que os Réus em 2006 passaram a utilizar o que construíram e licenciaram como armazém em 1993, dentro do perímetro urbano da aldeia (solo urbano destinado a edificação urbana com função residencial, terciária e outros usos compatíveis com o uso habitacional) e a cerca de 45 metros da que é a casa de morada de família dos Autores há mais de 36 anos, para aí guardarem uma manada de 30 vacas que exploram, dando azo a que os sons, cheiros e dejectos advindos dos referidos animais ponham em causa o descanso, a saúde e o bem estar dos Autores, que têm vindo a sofrer os correspondentes incómodos, sem que a autoridade municipal, a quem a situação foi denunciada e que notificou os Réus para retirarem os animais, tome qualquer atitude.
Os Réus contestaram alegando que na área em que se inserem – Região do ..... – a economia é baseada na agricultura e na pecuária, sendo comum a existência desses animais junto das residências (só na sua aldeia existem 31 cortes e 7 armazéns com animais bovinos), sendo tal situação considerada um uso compatível com o uso habitacional. Que nunca tal actividade foi considerada um perigo para a saúde o bem-estar ou a qualidade de vida dos residentes. Os sons emitidos pelas suas vacas (e por todas as demais existentes na aldeia) fazem parte do normal meio ambiente e não se produzem durante o período nocturno; ao passo que os dejectos são tratados segundo o método imemorial e tradicional para produzir adubo natural, não produzindo cheiros ou atraindo insectos. Se cheiros ou insectos afectam a casa dos Autores são os advenientes da sua corte situada por baixo da sua casa, onde têm 10 a 12 porcos com esgotos em rego a cair para o caminho público. Que o PDM só entrou em vigor em 1995, data em que já tinha instalada a sua exploração tendo sido declarado o interesse público municipal na regularização da sua actividade pecuária no âmbito do Regime Excepcional de Regularização das Actividades Económicas.
A final foi proferida sentença que, considerando assistir aos Autores, enquanto titulares dos direitos fundamentais à saúde, ambiente e tutela da personalidade, a faculdade de exigir o respeito pelo seu bem estar e qualidade de vida, que esse direito não está a ser respeitado pela conduta dos Réus ao levarem a cabo exploração pecuária dentro do perímetro urbano cuja regulamentação não consente essa utilização a qual emite cheiros e ruídos que perturbam o sono, o descanso, o bem estar e a saúde dos Autores, não afastando a ilicitude a existência de autorização administrativa para o exercício dessa actividade, e prevalecendo os direitos de personalidade sobre os direitos de iniciativa económica e de propriedade, condenou os Réus a retirarem o gado bovino do prédio que utilizam como estábulo, não mais o utilizando como tal, a limparem o referido prédio retirando o estrume aí existente, bem como a pagarem a quantia de 1.000 euros a cada um dos Autores.
Inconformados, apelaram os Réus tendo a Relação, depois de proceder à alteração do elenco factual, considerado que, não obstante também os Réus com a emissão de ruídos e cheiros pela sua exploração violarem o direito à integridade física, ao repouso e à qualidade de vida dos Autores, os Autores não podiam prevalecer-se desse direito uma vez possuem, em similitude de tempo e espaço, uma exploração de suínos, com maior carga poluente que a exploração dos Réus, que igualmente emitem ruídos e maus cheiros, por tal constituir abuso de direito na modalidade de ‘tu quoque’; em consequência revogou a sentença recorrida, julgando a acção totalmente improcedente.
Os Autores, agora irresignados, vieram interpor recurso de revista concluindo, em síntese, por: a) Nulidade por excesso de pronúncia e falta de fundamentação (a alteração dos factos 7, 8 e 16 no sentido de que há na aldeia outros estábulos para além do dos Réus não está no âmbito dos temas de prova, é facto essencial não alegado, não foi possível exercer o contraditório e o acórdão não refere em que prova se baseou); b) Nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão (a fundamentação, embora fundada circunstâncias não demonstradas, vai no sentido da não ilicitude da conduta dos Réus mas conclui-se em sentido contrário); c) Violação de lei substantiva (ao alterar o facto 24); d) Erro de julgamento (não há abuso de direito porquanto não há qualquer confiança a tutelar nem identidade de comportamentos – a exploração dos Autores é legal, os suínos não emitem ruídos e estes não são mais poluentes, enquanto a exploração dos Réus é ilegal e os seus animais emitem ruídos e cheiros).
Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.
A Relação pronunciou-se no sentido de não ocorrerem as invocadas nulidades II – Da admissibilidade e Objecto do Recurso A situação tributária mostra-se regularizada.
O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se mostra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).
Tal requerimento mostra-se devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).
Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).
Destarte, o recurso merece conhecimento.
Vejamos se merece provimento. -*- Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta...
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