Acórdão nº 76/20.4BCLSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 26 de Novembro de 2020
Magistrado Responsável | PEDRO NUNO FIGUEIREDO |
Data da Resolução | 26 de Novembro de 2020 |
Emissor | Tribunal Central Administrativo Sul |
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I. RELATÓRIO S….. – Futebol SAD apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto recurso da deliberação do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol de 19/12/2019, proferida no processo n.º ….., que lhe aplicou sanção de multa pela prática da infração disciplinar prevista e punida pelo artigo 86.º-A, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, relativa à falta de colaboração com a justiça desportiva.
Pede i) a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa; ii) a revogação do acórdão proferido pela demandada e a absolvição da impugnante.
Por decisão de 10/08/2020, o TAD decidiu, por unanimidade, declarar improcedente a ação e manter a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF.
Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “(…) 1. O presente Recurso tem como objecto a interpretação normativa efectuada no Aresto Recorrido a propósito dos n.
os 2 e 6 do artigo 18.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de Julho.
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O Aresto Recorrido considera que o organizador da competição desportiva, seja a Recorrida, seja outro, tem o direito de exigir, no âmbito de procedimento disciplinar, dos Arguidos o acesso irrestrito - no sentido de que é o próprio organizador que estabelece os parâmetros em que a cedência vai ocorrer - ao sistema de CCTV instalado no recinto desportivo.
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A interpretação consagrada no Aresto Recorrido desconsidera toda a letra do artigo 18.°, nomeadamente as importantes restrições ao uso dos sistemas de CCTV no mesmo contidas.
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O Aresto Recorrido, conforme melhor se deu conta em sede de Alegações, desconsidera, igualmente, a letra do n.° 6 do artigo 18.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de Julho - que consagra o direito de acesso do organizador da competição desportiva aos sistemas de CCTV nomeadamente no que respeita à remissão operada pelo preceito em causa para o n.° 2 do mesmo artigo.
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O organizador da competição desportiva apenas pode aceder ao sistema de CCTV dos recintos desportivos caso a conduta que pretenda investigar configure, simultaneamente, um ilícito criminal ou contra-ordenacional, devendo obter tais imagens das forças de segurança, da APCVD ou do Ministério Público.
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A pré-existência de um processo contra-ordenacional ou criminal (decorrente da remissão para o n.° 2 do artigo 18.°) funciona, pois, como factor de limitação da intrusão nos direitos fundamentais dos Clubes e daqueles que frequentam os recintos desportivos.
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A interpretação normativa do n.° 6 do artigo 18.° da Lei n.° 39/2009, de 30 de Julho consagrada no Aresto Recorrido viola o princípio da não autoincriminação ou princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
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Conforme bem nota a jurisprudência constitucional citada, o acima citado preceito constitucional não é absoluto, comportando excepções.
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Tais excepções devem ser restringidas ao máximo, operando exclusivamente nos casos em que não seja possível aceder a determinados meios de prova, salvo através da colaboração do arguido, o que, conforme bem se demonstrou em sede de Alegações, não acontece no caso vertente.
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A Recorrente tinha o direito de recusar o envio das imagens do CCTV à Comissão de Instrutores”.
O recorrido apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “(…) 1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, datado de dia 10 de agosto de 2020 que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multa por aplicação do artigo 86.º-A, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
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A Recorrente foi sancionada, pela prática de uma infração disciplinar prevista e sancionada pelo artigo 86.º-A, n.º 1 do RD da LPFP, por, não obstante ter sido regulamentarmente notificada para tal, não ter habilitado a Comissão de Instrutores, no prazo de 2 dias, ou em qualquer outro, com cópias de qualquer registo de imagem criado pelo sistema de videovigilância (vulgo CCTV) instalado no Estádio da Luz aquando da realização do jogo disputado entre a S….. - Futebol SAD e a F….. - Futebol SAD.
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No que se refere ao direito de acesso às imagens captadas por ocasião de jogos oficiais há, desde logo, ao regime legal existente.
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Na redação vigente na data da prática dos factos, determinava o n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho que "O organizador da competição desportiva pode aceder às imagens gravadas pelo sistema de videovigilância, para efeitos exclusivamente disciplinares e no respeito pela Lei da Proteção de Dados Pessoais, aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, devendo, sem prejuízo da aplicação do n.° 2, assegurar-se das condições de reserva dos registos obtidos".
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O artigo 18.º não contempla qualquer obrigação do organizador da competição de solicitar às forças de segurança ou a qualquer autoridade administrativa que lhe remetam as imagens recolhidas pelo promotor do espectáculo.
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Nem, tão-pouco, tal obrigação resulta do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
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A interpretação da Recorrente não tem qualquer apoio na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
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Atendendo ao acima exposto, não temos qualquer dúvida, como, de resto, não teve o Conselho de Disciplina nem o Colégio Arbitral, que a Recorrente tem o dever legal de remeter as imagens ao organizador da competição.
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Efetivamente, se a Lei e os Regulamentos Administrativos impõem que a Recorrente proceda à recolha de imagem por ocasião do jogo sub judice, bem como, quando interpelada para tal, que esta proceda ao seu envio à Comissão de Instrutores da LPFP, deverá a Recorrente atuar em conformidade e, não o fazendo, incorre, obviamente, na prática da infração disciplinar pela qual foi sancionada. Prosseguindo, 10. O direito à não autoincriminação não é um direito absoluto (mesmo no âmbito do direito penal!), antes se impondo a sua harmonização em nome e na defesa de determinados valores e interesses que o Estado visa salvaguardar, observado que seja o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa e constatada a existência de lei prévia que consinta essa restrição.
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Tal como se demonstrou em sede de alegações, este é o entendimento sufragados pela doutrina e jurisprudência, inclusive, constitucional.
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O artigo 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009 e o artigo 86.º-A, n.º 1, do RD LPFP tutelam direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, com particular destaque para o "direito à segurança" (artigo 27.º da CRP).
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A restrição imposta pelo dever de colaboração com as entidades organizadoras da competição desportiva decorre expressamente do n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que é uma lei geral e abstrata, aprovada pelo Parlamento e respeita o princípio da proporcionalidade.
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Pelo que, a interpretação efetuada do disposto no n.º 1 do artigo 86.º-A do RD da LPFP e no n.º 6 do artigo 18.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho (na redação em vigor à data dos factos), quando interpretada no sentido de que o Arguido em Processo Disciplinar Desportivo é obrigado a remeter à Entidade Acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo por si utilizado para os jogos disputados na qualidade de visitante, não é inconstitucional, não violando, em particular, o disposto no n.º 2 do artigo 18.º e no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
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Neste sentido, andou bem o Colégio de Árbitros ao julgar improcedente o recurso, e, em consequência, ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo artigo 86.º-A, n.º 1 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.” * Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, a questão a decidir consiste em saber se é inconstitucional a interpretação dos artigos 86.º-A, n.º 1, do RDLPFP, e 18.º, n.º 6, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, no sentido do arguido em processo disciplinar desportivo ser obrigado a remeter à entidade acusatória as imagens e som registadas pelo sistema de videovigilância instalado no recinto desportivo, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa.
Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
* II. FUNDAMENTOS II.1 DECISÃO DE FACTO Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos: “1. No dia 24 de agosto de 2019, realizou-se o jogo relativo à 3.ª jornada da Liga NOS entre a S….. - Futebol, SAD e a F….., SAD, no recinto desportivo da primeira entidade; 2. Na sequência de certidão extraída no âmbito do Processo Disciplinar n.º...
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