Acórdão nº 729/20.7BELSB de Tribunal Central Administrativo Sul, 29 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelLINA COSTA
Data da Resolução29 de Outubro de 2020
EmissorTribunal Central Administrativo Sul

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: O....., devidamente identificado como autor no Outro processo urgente que instaurou contra o Ministério da Administração Interna (Recorrido), inconformado veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL), de 28.5.2020, que julgou improcedente a acção e absolveu o Recorrido do pedido de anulação da decisão que lhe recusou o pedido de asilo e a sua substituição por outra que determine a análise e instrução do procedimento, seguindo-se os demais tramites legais conducentes à respectiva concessão do estatuto de refugiado.

O Recorrido não contra-alegou.

O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Notificado do parecer que antecede, o Recorrente nada disse.

Foi proferida decisão sumária pelo relator que negou provimento ao recurso interposto e manteve a sentença recorrida na ordem jurídica.

O Recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, defendendo a admissibilidade do recurso de revista e mantendo, no essencial, as conclusões do recurso inicial.

Notificado, o Recorrido não contra-alegou.

Por despacho foi o requerimento de recurso de revista convolado em reclamação para a conferência.

A reclamação para a conferência constitui o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objecto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objecto do recurso no uso do direito conferido pelo artigo 635º, nº 4, do CPC, mas não pode ampliar o seu objecto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do artigo 636º, nº 1 do mesmo Código, isto é, limitada à parte vencedora que tendo decaído em alguns dos fundamentos da acção, apesar disso, obteve vencimento no resultado final.

A reclamação para a conferência da decisão sumária proferida apenas pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária.

Cumpre, pois, reapreciar as questões suscitadas pelo Recorrente, agora reclamante, em sede de conclusões do recurso, fazendo retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária porque, não obstante a deduzida reclamação para a conferência, são as conclusões da alegação de recurso que fixam o thema decidendum.

Nas alegações de recurso o Recorrente formulou ipsis verbis as seguintes: “Conclusões: 7. Efetivamente resta claro, através do seu depoimento, que o Recorrente viu na saída do seu próprio país a única solução para salvaguardar a sua integridade física, e em última instância a própria vida.

  1. Tudo conforme a peça de impugnação jurisdicional que dá por integralmente reproduzida.

  2. De fato o Requerente acredita se regressar à Marrocos, voltará para uma situação de pobreza […] E acrescenta que acredita poder ser perseguido e detido pelas autoridades do país de origem, nomeadamente pelo fato de ter migrado, pela falta de documento de identificação, que foi extraviado durante a viagem e em razão do comportamento estatal prévio, relativamente à negativa de identifica-lo civilmente.

  3. Ressalte-se que a promoção do registo civil de nascimento e acesso à documentação básica de identificação é um direito humano imprescindível ao exercício pleno da cidadania, que se constitui numa porta de acesso, posto que condição necessária para a satisfação de outros direitos e demandas (Centro de Estudos Innocenti da UNICEF, Birth Registration: Right from the start [em português: Registo de Nascimento: o Direito a ter Direitos], Florença, Itália, 2002, pág. 32).

  4. E que, nesse quesito, os direitos do Requerente têm sido ofendidos pelo Estado Marroquino desde o seu nascimento.

  5. Ou seja, o Requerente acredita que pode vir a estar exposto a nova violação grave e sistemática dos seus direitos fundamentais, tornando a sua vida intolerável no seu país de nacionalidade.

    Acresce que, 13. O Requerente se encontra fora do seu país de nacionalidade e residência.

  6. O Requerente não se enquadra em nenhuma causa exclusiva do estatuto de refugiado.

  7. O Requerente mantém um temor real de que volte a ser perseguido, e daí resultem consequências mais graves para os seus direitos mais primitivos, caso volte ao seu país natal.

  8. O que se traduz efetivamente na condição descrita, senão pelo art. 3º, mas inequivocamente pelo art. 7º, nº 2, b) da Lei de Asilo: “efetivamente se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual […] por correrem o risco de sofrer ofensa grave” risco de ofensa esse que, no caso em epígrafe, se traduz no risco de “tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem”.

  9. Note-se que aqui a norma remete a análise ao sentimento manifestado pelo próprio requerente de proteção.

  10. Efetivamente incumbia ao Recorrente, para apreciação do pedido apresentado, demonstrar a veracidade dos “(…) fatos concretos donde se possa inferir que o requerente tenha sido alvo de ameaças ou perseguições (…)”.

  11. O que de fato demonstrou e deveria ter resultado em decisão diversa da ora impugnada, porquanto suas declarações não foram contraditórias nesse sentido.

    Por outro lado, 20. Não se pode concordar com a sentença recorrida quando resume o tratamento desumano ou degradante a atos de tortura, penas excessivas ou situações de conflito armado, reduzindo consideravelmente o amplíssimo leque de atos passíveis de se relacionar ao conceito de violação grave e sistemática dos direitos fundamentais, e nos quais se incluem a violência policial e a negativa ou dificuldade de acesso a direitos que conduzem ao pleno exercício da cidadania, como a identificação civil.

  12. Tais conceitos são de conhecimento amplo e notório e, especialmente sobre juristas impõe-se o dever do seu mais amplo conhecimento, pelo que deixa de tecer maiores considerações.

    Contudo, 22. O Tribunal a quo, em total consonância com a primitiva decisão impugnada, não entendeu que os fatos alegados pelo Recorrente pudessem conduzir ao enquadramento do seu caso na Lei de Asilo, e considerou infundado o pedido de proteção internacional em qualquer das modalidades, asilo ou proteção subsidiária.

  13. Entretanto, a decisão impugnada parece ter emergido de uma deficiente instrução do procedimento e de um entendimento desproporcionado, por excessivamente restritivo, do princípio do benefício da dúvida, como do princípio de non-refoulement consagrado no artigo 33º da Convenção de Genebra, conjugado com os preceitos do artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

    Ora, 24. O Recorrente prestou depoimento coerente, credível e suficientemente justificador do sentimento de impossibilidade e receio de regressar ao seu país, os quais dá-se por integralmente reproduzidos.

  14. Depoimento este que tem o condão de lhe outorgar o benefício da dúvida, princípio aplicável a propósito dos procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado: Depois do requerente ter feito um esforço genuíno para substanciar o seu depoimento pode existir ainda falta de elementos de prova para fundamentar algumas das suas declarações. Como explicado antes [parágrafo 196], dificilmente é possível a um refugiado "provar" todos os factos relativos ao seu caso e, na realidade, se isso fosse um requisito, a maioria dos refugiados não seria reconhecida.

    É, assim, frequentemente, necessário conceder ao requerente o benefício da dúvida […].

    [Cfr. Manual de procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado de acordo com a convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao estatuto dos refugiados, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - ACNUR, Genebra, Janeiro de 1992].

  15. E não se diga que o fato de ter complementado o depoimento após a notificação respetiva lhe retira a credibilidade.

  16. É completamente compreensível que num momento de apreensão, detido perante a autoridade de um país desconhecido, com normas e procedimentos desconhecidos, o Recorrente não se tenha sentido suficientemente seguro para relatar completamente a verdade.

  17. Todavia, em nenhum momento do depoimento prestado é possível identificar contradição ou incoerência no discurso, mesmo comparando-se o discurso original com os esclarecimentos posteriores.

  18. Por outro lado, o requerente de asilo ou de proteção internacional não pode ser expulso ou reenviado para um local onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas, conforme o princípio do non-refoulement.

  19. Para preenchimento do citado preceito exige-se a ocorrência de situações concretas que impeçam ou impossibilitem o regresso e a permanência do requerente de proteção ao país da sua nacionalidade.

  20. E no caso concreto resulta credível que o Recorrente sofreu, durante toda a sua vida, uma situação de sistemática violação dos direitos humanos, e que corre o risco de ter seus direitos violados de forma grave e sistemática caso seja retornado ao seu país de origem.

  21. O que de fato deve ser tido por demonstrado e deveria ter resultado em decisão diversa da ora impugnada, porquanto suas declarações não foram contraditórias nesse sentido.

  22. E por fim, estipula o artº 18º da Lei nº 27/2008, de 30/06 que “1 – Na apreciação de cada pedido de protecção internacional, compete ao SEF analisar todos os elementos pertinentes, designadamente as declarações do requerente, proferidas nos termos dos artigos anteriores, e toda a informação disponível”.

  23. Norma que impõe ao SEF a investigação acerca da atual situação políticoeconómica e social do Marrocos e a apreciação da respetiva situação considerando as circunstâncias concretas do ora Recorrente, para então integrar o conceito de proteção por razões humanitárias.

  24. Pelo que sempre se dirá que, não o fazendo, ter-se-á de entender...

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