Acórdão nº 807/20.2T9GMR-A.G2 de Tribunal da Relação de Guimarães, 26 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelANT
Data da Resolução26 de Outubro de 2020
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO 1.

No âmbito Inquérito nº 839/19.3PBGMR, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 2ª Secção de Loures, da Procuradoria da República da Comarca de Lisboa Norte, no qual é ofendida M. B. e arguido E. P., estando este indiciado da prática de um crime de violência doméstica, promoveu o Ministério Público, em 13/01/2020, que à mesma fossem tomadas declarações para memória futura em consonância com o disposto no Artº 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.

*2.

Expedida a respectiva carta precatória, tendo em vista a realização da dita diligência, veio a mesma a ser distribuída, no dia 26/03/2020, sob o nº 807/20.2T9GMR, ao Juízo de Instrução Criminal de Guimarães, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.

*3.

Porém, aquele requerimento foi indeferido pelo despacho de 27/03/2020 do Mmº Juiz a quo, cuja cópia consta de fls. 18/21, nos seguintes termos (transcrição (1)): “Declarações para memória futura em crime de violência doméstica: Através do requerimento ora em apreço veio o Ministério Público requerer, nos termos do disposto no artigo 33º, nº 1, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, a realização de diligência de declarações para memória futura da ofendida.

Refere, para tanto e em síntese, que investigam-se nos autos factos susceptíveis de configurarem a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pessoa da ofendida.

*Cumpre apreciar e decidir.

Conforme assinala Damião da Cunha, citado no estudo de Cruz Bucho «Declarações para memória futura (elementos de estudo)»1, página 3, «parece adquirido genericamente que, num processo de estrutura acusatória, a audiência de julgamento e em especial a produção da prova assume o lugar central no processo penal. A produção da prova que deve servir para fundamentar a convicção do julgador, tem de ser a realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção da prova.».

Sendo esta a regra, que, em princípio, toda a prova deve ser produzida em audiência, o legislador não podia ignorar as realidades da vida.

Seguindo de perto o referido no estudo supra citado, páginas 8/9, diremos que «pode suceder que a produção de determinada prova apresente carácter de urgência incompatível com a espera do momento normal e oportuno da audiência de julgamento; pode dar-se o caso de haver risco de perda da prova se houver de aguardar-se por aquele momento.

A lei não podia deixar de prover a este perigo, permitindo a produção antecipada da prova. De outro modo prejudicar-se-iam gravemente as garantias de apuramento da verdade, se a lei não acudisse, com uma solução adequada, à necessidade de obtenção urgente do meio de prova que ameaça perder-se.

É esta a finalidade originária dos artigos 271.º e 294.º (cujo regime foi depois tornado extensivo às vitimas de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual) ao permitir que em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha (ou assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) que previsivelmente a impeça de ser ouvida, o juiz de instrução, proceda à sua inquirição no decurso do inquérito ou da instrução a fim de que o seu depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Embora entre nós o ponto seja raramente acentuado, a produção antecipada de prova não constitui apenas uma “esigenze pratiche” (Tonini), um meio cautelar de conservação da prova, mas também um direito, o direito a que se assegure a produção ou conservação da prova através da actuação antecipada e adequada dos meios probatórios, integrando-se no direito à prova.».

A prestação de declarações para memória futura realizada em fase de inquérito ou de instrução constitui uma excepção ao princípio da imediação porque, embora percepcionada de modo directo por um juiz, a prova é produzida perante um juiz (juiz de instrução) que é, em regra, diferente daquele que a vai valorar (juiz de julgamento).

São três os fundamentos ou requisitos gerais da tomada de declarações para memória futura: - Doença grave que previsivelmente impeça a testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) de ser inquirida em julgamento; - Deslocação para o estrangeiro que previsivelmente impeça a testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) de ser inquirida em julgamento; - Crimes do catálogo (contra a liberdade e autodeterminação sexual e tráfico de pessoas).

*Não estando preenchido nenhum destes requisitos, socorre-se o Ministério Público do previsto na Lei 112/2009, de 16 de Setembro – Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas (...).

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 33º, do referido regime jurídico, o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Conforme se refere no estudo a que aludimos supra, no âmbito do crime de violência doméstica o artigo 33º prevê um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura, atribuindo, inclusive, legitimidade à vítima, que não constituída assistente ou parte civil.

O objectivo perseguido pelo legislador foi, claramente, o de reforçar a tutela judicial da vítima, consagrando um direito que visa uma protecção célere e eficaz [artigo 3º, alínea a)] e assegurando-lhe uma protecção jurisdicional igualmente célere e eficaz [artigo 3º, alínea h)].

Está em causa o propósito de proteger a vítima, prevenindo a vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias.

Neste domínio das declarações para memória futura, o propósito da lei de violência doméstica terá sido o de consagrar a possibilidade de inquirição antecipada da vítima de violência doméstica, conferindo-lhe a este nível um estatuto equivalente ao das vítimas de crimes de tráfico de pessoas ou de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (artigo 271º, nº 1, do Código de Processo Penal), reforçado ao nível da legitimidade para requerer a produção antecipada de prova.

A redacção legal constante do mencionado nº 1 do citado artigo 33º não deixa margem para dúvidas sobre o carácter não obrigatório da tomada de declarações para memória futura, ao estatuir que «o juiz (…) pode».

Conforme se deixou escrito no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo nº 689/11.5PBPDL, datado de 11/01/2012 e consultável em www.dgsi.pt, «a redacção originária do CPP de 1987, em coerência com o modelo acusatório que adoptou, previa no seu artigo 271.º que, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a pudesse vir a impedir de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução procedesse à sua inquirição no decurso do inquérito para que o seu depoimento pudesse, se necessário, vir a ser tomado em conta no julgamento.

Embora o formalismo estabelecido para esse acto possibilitasse, em certa medida, o exercício do contraditório, o acto não decorria em condições idênticas àquelas em que teria lugar se realizado na audiência.

Este instituto, na versão originária do Código, desempenhava uma função puramente cautelar visando obter uma prova que poderia ser impossível de produzir na audiência de julgamento. A prova assim recolhida somente poderia ser utilizada, através da leitura do respectivo auto, se tal viesse a ser necessário.

As revisões de 1998 e de 2007 alteraram a natureza meramente cautelar do artigo 271.º do Código de Processo Penal.

Conquanto esta finalidade se tenha mantido, as declarações para memória futura passaram a poder ter igualmente lugar para protecção de vítimas de determinados crimes. A partir de 1998, dos crimes sexuais e, a partir de 2007, dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual. Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas em conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respectivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar.

O artigo 28º, nº 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito. Deixou de ter uma mera função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo artigo 2.º, alínea a), da Lei nº 93/99, de 14/07, e a abarcar qualquer tipo legal de crime.

A Lei nº 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art. 33º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do artigo 271º do Código de Processo Penal.

Admitindo o artigo 33º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.

Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente...

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