Acórdão nº 02431/09.1BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 15 de Outubro de 2020

Magistrado ResponsávelADRIANO CUNHA
Data da Resolução15 de Outubro de 2020
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo: I – RELATÓRIO 1.

A………..

, agente da PSP, intentou, no TAC de Lisboa, contra o “Estado Português” e B………..

(este, também agente da PSP), ação administrativa peticionando a condenação dos Réus a pagarem ao Autor a quantia indemnizatória de 119.000€, acrescida de juros moratórios, em decorrência das lesões por si sofridas por acidente de viação, ocorrido em 2/10/2003, sendo o Autor transportado no banco traseiro do veículo policial acidentado, propriedade do 1º Réu, conduzido, na altura, pelo 2º Réu, em deslocação em serviço de urgência (cfr. p.i. a fls. 1 e segs. SITAF).

  1. O TAC de Lisboa, por sentença de 3/6/2016 (cfr. fls. 597 e segs. SITAF), absolveu os Réus dos pedidos uma vez que considerou inaplicável ao caso o regime da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão privada (constante, designadamente, dos arts. 483 nº 1, 501º, 503º e 504º do Código Civil); e, considerando aplicável ao caso o regime de responsabilidade extracontratual do Estado por atos de gestão pública, constante, à altura dos factos, do DL 48.051 de 21/11/1967, entendeu que os Réus deveriam ser absolvidos dos pedidos, nos termos do art. 2º nº 1 desse diploma, uma vez que não resultou comprovada a ilicitude da atuação do 2º Réu, agente da PSP condutor do veículo.

  2. O Autor, inconformado com esta sentença, interpôs recurso de apelação para o TCAS, o qual, por Acórdão de 21/2/2019 (cfr. fls. 746 e segs. SITAF), negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.

  3. Mantendo-se inconformado, agora com este Acórdão proferido pelo TCAS, veio o Autor interpor, ao abrigo do disposto no art. 150º do CPTA, o presente recurso jurisdicional de revista, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. 824 e segs. SITAF): «

    1. O presente recurso vem interposto do douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no dia 21 de Fevereiro, o qual confirmou a sentença proferida nos autos referenciados, que, julgando a acção improcedente, absolveu os Réus do pedido formulado sentença, o que veio a ser confirmado pelo Tribunal Central Administrativo Sul.

    2. Em suma, entendeu o douto tribunal a quo que a condução do veículo da PSP em exercício de funções e com marcha de urgência assinalada traduz-se num acto de gestão pública do Estado, motivo pelo qual, não tendo sido provada a ilicitude da conduta do condutor em sede de processo crime, não há lugar à reparação dos danos causados ao Recorrente.

    3. Conclusão mediante a qual é considerado que, apesar de amplamente demonstrados e provados os danos patrimoniais e não patrimoniais causados ao Recorrente, este não tem direito a ser ressarcido pelos mesmos.

    4. Ora, esta é uma questão que tem sido amplamente discutida quer na doutrina e na jurisprudência, sendo certo que abundam acções judiciais similares com a presente, onde claramente se conclui que o lesado que não tenha concorrido com culpa para o evento, terá SEMPRE de ser ressarcido pela violação do seu direito à vida e à integridade física, direitos estes constitucionalmente protegidos.

    5. Note-se que todos os dias milhares de veículos titulados pelo Estado circulam e são intervenientes em sinistros de onde saem lesados. Que esses veículos estão isentos de seguro de responsabilidade civil obrigatório e na maioria das vezes não têm.

    6. Pelo que torna-se impreterível haver uma posição fundamentada deste douto tribunal, quer sobre a qualificação jurídica, quer sobre o contraponto entre a legislação e os direitos fundamentais dos cidadãos aqui violados. Urge clarificar estas situações, até porque todo este processo e a postura tomada pelos tribunais criam uma incerteza jurídica flagrante, que, a n/ ver não pode continuar.

    7. S.m.o., há erro de julgamento tanto na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como na sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afeta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexata qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro.

    8. Entendeu o douto tribunal administrativo de círculo de Lisboa que:”...Os artigos 501°, 503° e 504°, do CC, não são aplicáveis in casu, uma vez que não estamos no domínio de actividades de gestão privada mas de gestão pública, sendo antes aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado previsto no Decreto-Lei 48051 de 21/11/1967...” (pág. 21).” i) E que, “Posto isto, vem provado que a viatura do Estado circulava em marcha de urgência, em serviço policial, o que equivale a que a classificação efectuada na sentença recorrida, ainda que sumariamente, se afigure acertada, devendo este evento — que também é "acidente“ — considerar-se como de gestão pública. “”Ou seja, em face do que vem provado, o despiste ocorreu no exercício das funções que estavam atribuídas ao condutor do dito carro do Estado e por causa desse exercício.

    9. Relativamente à responsabilidade pelo risco, entendeu o douto tribunal a quo que “a responsabilidade derivada do despiste e que gerou danos ao ora Recorrente, não sendo fundada em facto ilícito, só poderá ser reclamada a título de responsabilidade pelo risco derivado da condução desse veículo. (...) E temos por nós que a sentença ajuizou devidamente, pois esta responsabilização do Recorrido pelo risco terá de improceder, porque não estamos perante uma actividade que possa ser qualificada como excepcionalmente perigosa.” k) Ao contrário da maioria da doutrina e jurisprudência, a qual qualifica como actividade perigosa a actividade da polícia de segurança pública.

    10. E bem assim, a qualificação do sinistro como um acto de gestão pública é manifestamente controverso, uma vez que o acidente decorreu apenas do acto de condução do 2.° R.

    11. Também a nível constitucional, por um lado a par da responsabilidade funcional por atos ilícitos e culposos prevista no artigo 22.° CRP, a CRP prevê explicitamente outros institutos ressarcitórios densificadores do direito geral de reparação - art 62°, n° 1 CRP; art. 83.° CRP.

    12. Por outro lado, o princípio do Estado de direito democrático contém inevitavelmente um princípio de reparação de danos causados pela atividade pública impositiva de sacrifícios especiais e graves, quanto à indemnização por danos resultantes de atividades de risco e quanto à compensação derivada da obrigação de se eliminarem outros resultados lesivos semelhantes.

    13. O próprio n° 2 do art. 272, deste mesmo diploma legal, sublinha que “as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário“, qualquer violação a este limite constitucionalmente imposto, que cause lesão a um bem legalmente protegido, acarreta responsabilidade civil e o consequente dever de indemnizar.

    14. Ao contrário, entendeu o tribunal a quo que não obstante todos os danos estarem devidamente provados, uma vez que não se deu por provada a ilicitude do condutor, não há lugar a indemnização.

    15. Conclusão esta que não poderá ser aceitável, porque violadora dos princípios constitucionais já referidos, sendo certo que deixa uma clara incerteza e vazio legal quanto aos eventuais danos causados a pessoas singulares por factos lícitos ou ilícitos, desde que não fique provada a culpa do agente.

    16. Ademais, da factualidade assente resulta (e nem pode resultar outra coisa) que houve culpa efectiva do condutor! Note-se que este, apesar de conhecer perfeitamente a via, e com condições climatéricas adversas, despistou-se invadindo a faixa de rodagem contrária onde embate com outro veículo! s) Face a todo o supra exposto, resulta claro que ainda que se considerasse aceitável o enquadramento do sinistro ocorrido como um acto de gestão pública do estado, sempre falhou o douto tribunal por excluir sem mais, o direito ao Recorrente de ser ressarcido por todos os danos, por não considerar o exercício da actividade da Polícia de Segurança Pública uma actividade perigosa e concomitantemente, não ter resultado provado a culpa em sede de processo crime naquela data instaurado.

    17. Isto porque a culpa para efeitos de acção punitiva penal não é nem pode ser a mesma que no caso sub judicio.

    18. Posto isto, é n/ entendimento que o acto de condução do veículo in casu, sempre deveria ser qualificado como um acto de gestão privada do Estado.

    19. S.m.o., uma interpretação de modo diverso conduzirá a inobservância do artigo 13º da CRP e, até, a violação das regras estabelecidas pelo Direito Comunitário, quanto à responsabilidade por actos dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes dos Estados-membros.

    20. Como é consabido, são actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração, no exercício de um poder publico, ou seja, no exercício de uma função de direito, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coacção.

    21. Em termos de gestão privada, o Estado intervém como um simples particular, despido do seu poder público, procedendo como qualquer outra pessoa, no uso de faculdades conferidas pelo direito privado.

    22. No caso em apreço, o condutor circulava em via pública, estando sujeito à sinalização existente, normas, regulamentos, condições climatéricas e estado da via, agindo por conseguinte, despido do seu poder público, devendo por conseguinte ser este acto de condução do qual resultam os danos do ora Recorrente ser considerado um acto de gestão privada do Estado.

    23. De harmonia com o disposto no art. 501° do CC, o Estado e demais pessoas colectivas públicas, quando haja danos causados a terceiros pelos seus órgãos, agentes ou representantes, no exercício de actividades de gestão privada, respondem civilmente por esses danos causados pelos comissários.

      a

    24. Note-se que o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objetivamente antijurídico — violação de normas legais ou regulamentares, de princípios gerais ou de...

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